quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Kaffe.

A sensação de alguém estar enfiando uma moeda lentamente no meu cérebro. Eu me sentei no sofá e levei a mão a testa, rezando sem crença para que a dor sumisse; não sumiu. As luzes do apartamento, os sons da rua a dezesseis andares de distância, o vizinhos de cima jogando videogame, tudo, tudo doía. E rodava. E enjoava. E eu não conseguia comer, porque meu estômago rejeitava. Era como se meu corpo estivesse se voltando contra mim. E a moeda atravessava minha cabeça e voltava.

O meu celular começou a vibrar e eu tive que ponderar mentalmente se valia a pena me mover para atendê-lo. Abri os olhos devagarinho e vi o nome dele no visor, estiquei os dedos e atendi. Eu não precisei falar nada além de "Alô" para que ele notasse que havia algo errado. "Você quer que eu vá até aí?", ele me perguntou. Eu balancei a cabeça negativamente e pensei em negar, mas minha boca disse "Por favor, sim" e ele desligou, tarde demais para que eu pudesse mudar de ideia. E não seria ruim tê-lo lá, um pouquinho, uma companhia, só um pouco.

Ele chegou em cinco minutos, sabe-se lá onde estava antes, e praticamente arrombou a porta da frente, delicado que era. Eu permaneci com os olhos fechados, mas sorri. Eu o senti quando ele se ajoelhou na minha frente e passou a mão pelo meu rosto, afastando o meu cabelo. Eu o senti quando ele se sentou ao meu lado e me deitou no peito dele e me aqueceu um pouco. E quando eu desmaiei, eu continuei o sentindo. Eu não lembro do que ele fez, mas eu sei que eu o senti até acordar. Acordei na cama e o vi: ele havia carregado a poltrona da sala (e não arrastado, porque ele sabe que eu o mataria) até o meu quarto e estava ali, dormindo, em toda a sua perfeição. Eu estiquei o braço e toquei a mão dele; ele despertou e sorriu, esfregando os olhos como uma criança. "Você parece melhor", ele me falou, quase bocejando. "Eu estou melhor", eu respondi, ainda feliz e me sentindo uma adolescente por ele estar ali.

Ele me fez café-da-manhã enquanto eu assistia o noticiário. Eu não lembrava o quanto ele cozinhava bem, mas o cheiro dos ovos mexidos com café me lembraram rapidinho. Eu estava faminta, fraca nas pernas, mas ligada em tudo. Sentei-me no balcão e observei enquanto ele terminava os pratos. "Você é praticamente uma dona de casa", eu disse. Ele me passou uma caneca fumegante de café. "Você é praticamente o homem da casa", ele me respondeu, sentando-se na minha frente. "Cale a boca e beba seu café", eu falei, concentrando-me no cheiro. Silêncio por uns instantes. "Onde você estava ontem?", eu perguntei, timidamente. Ele fez aquela carinha de "Vergebung?" que sempre fazia. "Ontem. Quando me ligou e eu pedi para que você viesse. Onde você estava?". Ele olhou para a janela, para a caneca, sorriu e olhou para mim. "Com meus pais", ele respondeu, e eu senti os olhos abrirem mais e mais e meu rosto queimar. "Eles vieram me ver anteontem e nós estávamos jantando. Mas não tem problema", ele completou ao ver o que provavelmente foi meu rosto contorcendo-se em indignação. "É claro que tem problema", eu disse. "Não, não tem. Eu não teria ficado bem sabendo que você estava aqui, sozinha e passando mal". Eu me afastei até minhas costas tocarem o encosto da cadeira. "Mesmo?", "Mesmo".

Ele não tirava os olhos de mim, meio que esperando que eu reagisse mais, brigasse mais, e eu normalmente o faria se não estivesse tão cansada. "Pare de me olhar", eu falei, mesmo não estando olhando para ele. "Por quê?", ele respondeu. Eu virei os olhos para ele e indiquei com o queixo: "Cale a boca e beba seu café", eu repeti. Ele bebeu e foi minha vez de observar enquanto eu via o seu pomo-de-Adão se mexendo. "Pare de me olhar", ele disse com a boca ainda dentro da caneca. Eu coloquei minha caneca no balcão e tirei a dele devagarinho da mão dele, inclinei-me e o beijei.

Eu lembrava da primeira vez que havia o beijado, anos atrás, eu lembrava do gosto da boca dele, e eu senti aquilo misturado com o café que ele havia feito. Era muito bom. Ele me olhou com aqueles olhos ilegais e quase engasgou. Nenhum dos dois conseguia pensar em nada para dizer, e o pior: nenhum dos dois conseguia se lembrar que porra de motivo absurdo tinha nos separado. O que de tão ruim podia ser que tivesse feito com que nós não estivéssemos mais fazendo aquilo todos os dias, o tempo todo? Ele me puxou de novo e me beijou e eu procurei me lembrar: não me lembrei e continuei. "Eu amo você", ele me disse. "Eu sei, eu sei", eu respondi, incapaz de produzir uma resposta decente. "Fuja comigo", ele me pediu. E de repente me acertou, a memória, e eu vi tudo que havia acontecido antes. Era isso. Foi exatamente isso que ele havia dito, e na última vez eu disse Não. Devia haver um motivo muito forte, mas eu olhava para o rosto dele e não conseguia imaginar nada. Não, não havia motivo no mundo que me impedisse. "Claro", eu disse, e me senti completa. Era essa a ideia de felicidade que eu tinha? Sentir-me completa, sem nada faltando, tudo no lugar. Ele sorriu com os dentes retos e eu senti o gosto de café mais uma vez...

E é só isso que eu consigo me lembrar.

2 comentários:

  1. que texto maravilhoso...

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  2. Esse é o teu texto que mais me faz chorar. Puta merda, Audy. Puta merda.

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