domingo, 24 de fevereiro de 2013

Obehörigt avvikande från olycksplats.

Hoje eu finalmente tomei coragem de deixar a casa e caminhar pela rua. Sem sons, sem música, sem sequer o barulho das chaves no bolso, dos saltos no concreto, nem um assovio. Não por coincidência, o sol não saiu para mim hoje. Não quis chegar de mãos abanando, seria indelicado, eu não o via a tanto tempo, quão rude seria aparecer apenas com meus braços e minha cara lavada? Pois passei no posto de gasolina, o ponto médio entre a minha casa e a dele. Nós nos encontrávamos lá quando ainda éramos alcoolatras ilegais. Passávamos horas rondando o lugar, andando em volta da quadra, embaçando o vidro gelado que guardava as bebidas e escrevendo nossos nomes, ao contrário, com os dedos, com as unhas, com as pontas dos narizes. Eu não ia lá há muitos meses, vários meses, bastantes meses. O garoto que costumava trabalhar no caixa não estava mais lá, e ao invés de ser recebida com um sorriso, uma senhora pra lá dos seus quarenta anos com três dobras de queixo me olhou de cima a baixo com desconfiança ou desprezo; difícil identificar. E eu fiquei bons quinze minutos andando de lado a outro da prateleira, decidindo se levava o de sempre ou inovava. Afinal, ele ainda gostava dos mesmos vinhos? Será que havia encontrado uma nova cúmplice, uma nova Bonnie que o ensinara a gostar mais de vodka do que de whisky, mais de branco do que de tinto? Será que ele desprezaria a minha famosa bruschetta em favor de pão-de-alho? Será que alguém no meio do caminho o fizera preferir macarrão comum ao spätzle que a minha avó costumava fazer? Eu tilitei os dentes na unha de um polegar e tapetei a ponta do sapato no chão, mas não decidi nada. Optei pelo de sempre. A baguette e o tinto. E voltei a caminhar, sem nem ao menos notar que o sol já começara a se pôr e que agora eu balançava a cabeça de um lado para o outro, ouvindo música mentalmente e evitando pisar nas linhas e craquelados da calçada. Inventei um diálogo e um pedido de desculpas enquanto passava pela primeira quadra; saltitei por cima de uma poça na segunda; pensei em Vera Wang na terceira. E parei em frente ao prédio dele, e contei as janelas até a dele; a única com as luzes acesas e as cortinas fechadas. E a silhueta dele por trás delas. E Sidney Bechet a uma altura tão exorbitante que não me surpreenderia se a polícia aparecesse a qualquer momento para mandá-lo quebrar aquela vitrola imediatamente. E eu pensei, não seria ótimo se ele estivesse sozinho, pensando em como foi mesmo que ele tinha conseguido parar de fumar em 2008, e olhando para aquele quadro de Zaide que eu havia pintado para ele - se é que ele ainda guardava aquele quadro, mas uma garota deve sonhar alto - e tentado desesperadamente a me ligar para que eu o lembrasse qual o nome mesmo daquela freira que nos deu uma aula horrível sobre a Inquisição Espanhola? E aí eu apareceria na porta, com a baguette, o tinto, uma manga do casaco enrolada para cima, deixando a cicatriz que você me deu de presente no Dia das Mães de 2005 à mostra, e diria, diria que o nome dela era Margarida, como no filme, na versão dublada que nós fomos forçados a assistir. E a noite seria ótima. Nós dois fingiríamos que nada havia acontecido e jamais nos constrangeríamos com a discussão sobre o que ocorreu com nós dois.

Mas aí ele abriu as cortinas e apareceu na janela, e estava com uma barba ridícula cobrindo o rosto, e fumava, e mesmo de longe e sem meus óculos eu notei que o rosto dele estava tomado de calma. Ele não parecia angustiado com as dúvidas da existência, não parecia ter chorado em nenhum momento daquele dia. Não parecia ter ligado para a mãe pelo menos quatro vezes naquela semana. Não parecia sentir saudade alguma do colégio católico. Não parecia o tipo de pessoa que entraria numa capela para jogar azeite em cima de uma imagem da Virgem Maria. Não parecia sequer um homem que se interessasse por azeite. E ele virou a cabeça para mim, e eu notei que havia me reconhecido. Cheia de raiva, eu parti a baguette em duas, atirei um pedaço na direção dele e o outro para o meio da rua. Ele pareceu se agitar. Peguei o canivete do molho de chaves e enfiei na rolha e torci com toda a força até expulsá-la, e virei o vinho na boca e não abri os olhos até que houvesse terminado, e quando abri, ele já não estava mais na janela. Estava na porta do prédio, ainda com o cigarro na mão. Nada nele me parecia familiar.

Para me salvar de um carro, ele me empurrou na frente de outro, e os dois caíram inertes, em lados opostos, simétricos no asfalto.