domingo, 17 de novembro de 2013

Betraktarens betraktande av betraktarna.

Ela se olha no espelho todos os dias e conta as marcas. Roxinhos vermelhinhos rosinhas aqui ali acolá essa de quinta-feira atrás da porta essa de domingo na cozinha. Ela dormia com dois travesseiros quando o conheceu e vivia com dor nas costas, ele a acostumou a dormir com um travesseiro entre as pernas e agora ela demora menos a dormir e vive com dor nas costas de tanto deitar no peito dele e fingir que vê televisão enquanto na verdade fecha os olhos e fica ouvindo a respiração dele, ouvindo o cheiro dele, ouvindo o peito dele subir e descer, ouvindo a pele dele. O cheiro de café frio já não enjoa mais o cheiro de nicotina dos dedos dele já não se destaca mais o medo do escuro da solidão já não aflinge mais o cansaço do final de tarde já não abate mais. Às vezes até as cores mudam de repente quando ele chega porque os olhos dela mudam perto dele e ele é uma lente um espectro um ar uma inexplicação toda vez que toca nela. Ela sente aquela paz aquela naturalidade aquela serenidade aquela adrenalina aquela paixão pela vida que sempre ouviu falar. Ainda é uma pessoa pequena fútil mimada imatura chorosa queixosa arrogante teimosa, mas quando repousa nos braços dele poderia dar a volta ao mundo, numa bicicleta, sem filtro solar.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

En små eftermiddag kärlek notera.

The sun’s hitting the red carpet, reflecting on the lime green walls and everything’s looking sort of pink. I’m laying on the carpet, staring at the ceiling and touching my ribs; did I lose weight? Probably not. I’m thinking of him, of course. People say life’s easy, light and oh-so-simple and that we are the ones who make it complicated and sporadically fucked. My dear, if life was simple, then I’d be sitting on a church’s staircase with him, the weather would be so cloudy and so thick and the air would be oh-so-polluted, and we’d be in silence, me with a little tray of sushi on my lap, counting the red cars, him with a bottle of that beer you wouldn’t find here in the city, but at his hometown you would and that’s why I love him, his hands holding the ice-cold beer, the tiny drops of water falling from the bottle’s surface on his dry, worn-out fingers, the way his Adam’s apple moves up and down while he sips it, just like every other man on Earth, but he’s thinking about politics and the economy and staring at yellow birds across the street, and that’s why I love him.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Brusilovoffensiven, II.

Acordei tossindo barbante. Era cedo, ainda escuro, céu azul-marinho sem estrelas; todos os pássaros estavam longe, sem cantar, bebendo para afogar as mágoas. Me pergunto agora quais mágoas pode ter um passarinho, aquela coisa tão pequena, tão encantadora, e sei que às vezes as pessoas pensam isso de mim. Não sou pequena nem encantadora, mas que mágoas pode ter alguém como eu?, porém só sei que tanto eu quanto o passarinho sentimos muito, senhoras e senhores.

Recoloquei meus olhos no lugar. Minha cabeça estava toda às avessas, de trás pra frente: eu corri a noite toda do pequeno esqueleto faminto pela minha carne, mas eu fugi com os olhos nele e a nuca guiando o caminho. Tropecei, ralei os joelhos; sangrei caramelo que infestou o chão acarpetado com pequenos cristais vermelhos donde, um dia, nascerá um prédio que comportará um banco, uma lanchonete e uma agência de publicidade. Novamente erguida, eu me permiti deitar nos braços de nuvem do meu perseguidor carniceiro, mas ele não me abocanhou, famigerado: me envolveu inteira, curou minhas mazelas e me cobriu de fumaça branca, espessa, gelada, cheirosa, e assim eu dormi. Lá quando amanheci ele não estava mais. Meu amor. Meu inimigo.

É a minha oitava pílula e não é nem quarta-feira direito. Claustrofóbica, intoxicada, eu me curvo diante do sal grosso clorido, forçando-me a enxergar dentro do escuro. A cabeça dói novamente. Sou uma conformada, refugiada, mal diagnosticada e ignorada. Sempre três passos a frente da margem, correndo da correnteza, pés leves.

Só me aquieto nos seus braços de flor. Sou fascinada pela sua boca de amêndoa. Não me acostumo com seu cheiro de limão. O meu amor.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Brusilovoffensiven, I.

Meu nome é Jane quando penso nele. Eu sou a donzela indefesa, corajosa e confiante; eu sou talentosa e segura, volúvel e frágil; meus olhos inspiram intimidação, minhas mãos são finas e arroxeadas nas pontas e tremem com intimidade na presença dele; sou forte e marcante e me falham os joelhos quando ele me olha. Meu nome é Jane, Elizabeth, Anne, Emma, Catherine, Marianne, Fanny.

Eu já me matei mil vezes dentro de mim; troquei de pele como uma cobra e de alma como um anjo. Guardo minhas asas formadas por liláceas murchas enquanto aguardo a intermissão da minha existência. Ele chega, tira os tecidos dos meus ombros de constelação, aperta as palavras que eu nunca ousei clamar como minhas, gravadas no eco do oco dos meus ossos. O hálito gelado não toca o ar ao meu redor e se aninha nos meus cabelos. A boca bem por último com a suavidade de um trem descarrilhado. Meus olhos afundam e caem no cano enferrujado da minha laringe pra pousarem como plumas a anos-luz do fundo de mim, infestado de ervas-daninhas. Viram mariposas brancas.

Meu amor me engole, leva tudo de podre que há de mim com ele. Mastiga com dentes de algodão e me cospe em ouro líquido e cinzas, só pra eu nascer dele e dele de novo; meu amor é placenta, é açúcar, é sangue e esmeralda. Nasço toda vez que mais uma vez ele volta, só pra me purificar em trevas e me amar no chão.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Obehörigt avvikande från olycksplats.

Hoje eu finalmente tomei coragem de deixar a casa e caminhar pela rua. Sem sons, sem música, sem sequer o barulho das chaves no bolso, dos saltos no concreto, nem um assovio. Não por coincidência, o sol não saiu para mim hoje. Não quis chegar de mãos abanando, seria indelicado, eu não o via a tanto tempo, quão rude seria aparecer apenas com meus braços e minha cara lavada? Pois passei no posto de gasolina, o ponto médio entre a minha casa e a dele. Nós nos encontrávamos lá quando ainda éramos alcoolatras ilegais. Passávamos horas rondando o lugar, andando em volta da quadra, embaçando o vidro gelado que guardava as bebidas e escrevendo nossos nomes, ao contrário, com os dedos, com as unhas, com as pontas dos narizes. Eu não ia lá há muitos meses, vários meses, bastantes meses. O garoto que costumava trabalhar no caixa não estava mais lá, e ao invés de ser recebida com um sorriso, uma senhora pra lá dos seus quarenta anos com três dobras de queixo me olhou de cima a baixo com desconfiança ou desprezo; difícil identificar. E eu fiquei bons quinze minutos andando de lado a outro da prateleira, decidindo se levava o de sempre ou inovava. Afinal, ele ainda gostava dos mesmos vinhos? Será que havia encontrado uma nova cúmplice, uma nova Bonnie que o ensinara a gostar mais de vodka do que de whisky, mais de branco do que de tinto? Será que ele desprezaria a minha famosa bruschetta em favor de pão-de-alho? Será que alguém no meio do caminho o fizera preferir macarrão comum ao spätzle que a minha avó costumava fazer? Eu tilitei os dentes na unha de um polegar e tapetei a ponta do sapato no chão, mas não decidi nada. Optei pelo de sempre. A baguette e o tinto. E voltei a caminhar, sem nem ao menos notar que o sol já começara a se pôr e que agora eu balançava a cabeça de um lado para o outro, ouvindo música mentalmente e evitando pisar nas linhas e craquelados da calçada. Inventei um diálogo e um pedido de desculpas enquanto passava pela primeira quadra; saltitei por cima de uma poça na segunda; pensei em Vera Wang na terceira. E parei em frente ao prédio dele, e contei as janelas até a dele; a única com as luzes acesas e as cortinas fechadas. E a silhueta dele por trás delas. E Sidney Bechet a uma altura tão exorbitante que não me surpreenderia se a polícia aparecesse a qualquer momento para mandá-lo quebrar aquela vitrola imediatamente. E eu pensei, não seria ótimo se ele estivesse sozinho, pensando em como foi mesmo que ele tinha conseguido parar de fumar em 2008, e olhando para aquele quadro de Zaide que eu havia pintado para ele - se é que ele ainda guardava aquele quadro, mas uma garota deve sonhar alto - e tentado desesperadamente a me ligar para que eu o lembrasse qual o nome mesmo daquela freira que nos deu uma aula horrível sobre a Inquisição Espanhola? E aí eu apareceria na porta, com a baguette, o tinto, uma manga do casaco enrolada para cima, deixando a cicatriz que você me deu de presente no Dia das Mães de 2005 à mostra, e diria, diria que o nome dela era Margarida, como no filme, na versão dublada que nós fomos forçados a assistir. E a noite seria ótima. Nós dois fingiríamos que nada havia acontecido e jamais nos constrangeríamos com a discussão sobre o que ocorreu com nós dois.

Mas aí ele abriu as cortinas e apareceu na janela, e estava com uma barba ridícula cobrindo o rosto, e fumava, e mesmo de longe e sem meus óculos eu notei que o rosto dele estava tomado de calma. Ele não parecia angustiado com as dúvidas da existência, não parecia ter chorado em nenhum momento daquele dia. Não parecia ter ligado para a mãe pelo menos quatro vezes naquela semana. Não parecia sentir saudade alguma do colégio católico. Não parecia o tipo de pessoa que entraria numa capela para jogar azeite em cima de uma imagem da Virgem Maria. Não parecia sequer um homem que se interessasse por azeite. E ele virou a cabeça para mim, e eu notei que havia me reconhecido. Cheia de raiva, eu parti a baguette em duas, atirei um pedaço na direção dele e o outro para o meio da rua. Ele pareceu se agitar. Peguei o canivete do molho de chaves e enfiei na rolha e torci com toda a força até expulsá-la, e virei o vinho na boca e não abri os olhos até que houvesse terminado, e quando abri, ele já não estava mais na janela. Estava na porta do prédio, ainda com o cigarro na mão. Nada nele me parecia familiar.

Para me salvar de um carro, ele me empurrou na frente de outro, e os dois caíram inertes, em lados opostos, simétricos no asfalto.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Valentine.


“Olá, estranha.”

Sempre odiei a ideia de ter que conversar no dia seguinte. Não, eu não quero seu número de telefone, não quero seu e-mail, seu sobrenome para te achar no Facebook. Eu já tenho amigos suficientes, não preciso de mais um. Uma pessoa que passa as mãos pelo meu corpo e acaricia minha língua e meu ego por alguns minutos não é um candidato a amigo. Provavelmente o melhor jeito possível para não se tornar meu amigo é me beijando em uma noite; na manhã seguinte você não vai precisar nem lembrar o meu nome. Eu vou desaparecer atrás de uma viga e vou rezar pra que você faça o mesmo.

“Olá, estranha.”

Eu sempre deixei que eles me beijassem, para ser bem honesta. É um problema que eu vou ter que trabalhar um dia, possivelmente em terapia, com ajuda profissional. Eu não sou exatamente promíscua, mas não sei exatamente como dizer “não me beije mais” ou “não ponha a mão aí”. No final das contas, acabo me constrangendo comigo mesma para não gerar um constrangimento com quem-quer-que-seja. E no mais, eu me distraio. Eu não me importo o suficiente comigo pra parar os rapazes. Nunca morri por isso, e sempre me seguro a ideia de que, se necessário fosse, eu diria não na hora certa. Nunca precisei disso. Mas sentia tanta vergonha na manhã seguinte. A sensação sempre era como se eu tivesse me embebedado e feito algo errado. Antes tivesse. Antes tivesse.

“Olá, estranha.”

Eu nunca tive problema com solidão. Sempre vi todo mundo falando sobre almas gêmeas. Metades de frutas. Pés e sapatos. Eu estou bem, sério. Eu poderia ter alguém se quisesse, mas eu prefiro permanecer com meus padrões altos demais, critérios minuciosos demais, dealbreakers simples demais. Eu preferi continuar sendo antipática e séria com desconhecidos. Continuei sendo levemente estranha. Continuei tomando os socos e as mazelas mais fortes para poupar os outros, especialmente para me poupar de uma exposição ao ridículo. Eu estou bem. Eu não procuro por ninguém. Ninguém me procura. Eu estou bem.

“Olá, estranha.”

Foi uma surpresa, portanto, por esses e tantos outros motivos, tantas histórias que eu não tive tempo de contar, que eu me assustei acordando naquela cama que não era minha, com um travesseiro que não cheirava a mim. Minto. Não me assustei nem por um segundo com aquilo, e a falta de assombro foi o que me deixou mal. Eu estava sob uma roupa que não era minha, com um teto que eu não conhecia, a luz do sol vinha da direita e não diretamente da frente como na minha janela. Nenhum cheiro era meu. Havia um homem, um rapaz, talvez um garoto sentado ao lado dos meus joelhos.

“Olá, estranha.”

Parecia um bom rapaz. Lembrava-me dele. Eu estava distraída e isolada no meio dos meus amigos. Sozinha. Ele riu de algo que eu disse enquanto tentava ser a séria do grupo. Eu o encarei por bons minutos em silêncio. Ele disse que eu tinha olhos gigantes e pretos e que parecia uma fada. Eu não abri a boca. Ele me puxou pelos dedos e passou o resto da noite falando. Eu nunca o mandei calar a boca, o que teria feito sem nenhum pudor caso quisesse. Mas não quis. Não queria que ele parasse de falar, nunca mais. Jamais soltou meus dedos. Tinha um queixo proeminente e olhos azuis. Sob a luz vermelha forte do lugar, parecia mais baixo do que realmente era. Eu lembrava como não sorri para ele, não respondia nada substancial. Nada palpável. Eu o beijei, e não o contrário. Eu nunca havia sentido vontade real de beijar alguém. Eu nunca havia sido beijada por ninguém que me magoaria se não tivesse beijado. Eu nunca tinha beijado alguém com desejo. Ele comentou que era engraçado que eu usasse tanto preto e bebesse conhaque enquanto todos bebiam vodka, mas usava gloss com sabor doce nos lábios.

“Olá, estranha.”

“Você é um daqueles caras? Daqueles que esquecem nosso nome na manhã seguinte?”

“Você nunca me disse. Nada sobre você. Nem seu nome.”

“É tudo que eu sei, também.”

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Av elefanterna.

Esquisito como os locais da infância não são sagrados. E são bem menores do que eu pensava. Hoje por um infortúnio familiar eu estava acordada quando o sol apareceu e estava inquieta, com a garganta seca e o olhar meio úmido. Tive a infeliz ideia de sair pra caminhar e acabei sendo levada inconsciente até uma praça onde eu passei minha infância. Pra quê. Quando eu era pequena, eu achava que apenas pessoas de bem acordavam e saíam às ruas antes das oito da manhã. Achava digno, bonito. A rua sempre parece mais clarinha e limpa quando o sol nem esquentou o asfalto e as pedras ainda. O céu parece mais bonito, mesmo que esteja nublado e poluído, o que não era o caso hoje. Deitei aleatoriamente em um banco absolutamente desconfortável, cuja existência não faz sentido no meio daquela praça. Hoje eu fui levada a conclusão que eu posso ouvir o The Wall fora da ordem e ele ainda se encaixa perfeitamente quanto a musicalidade. As letras ficam confusas, but then again, elas não fazem exatamente sentido quando ouvidas na ordem escolhida pelo Roger, mas isso não tem nada a ver com essa anedota, se é que é uma anedota; é só pro efeito de curiosidade. Tentativa número nove de parar de gostar tanto de fazer o errado. Vai durar uns dois meses. Lá ao longe perto do pombal havia um mendigo fumando crack. Achei bonito. Não era como no noticiário, ele não se sacudia, não dizia nada, não gritava. Definitivamente fumava crack, mas fumava numa tranquilidade louca. Duvido que eu fosse encontrá-lo caso voltasse lá daqui a duas semanas. Mas o pior foi quando eu me sentei, finalmente, desconfortavelmente, e resolvi dar atenção àquele lugar que me acolheu tantas vezes na companhia dos meus avós fascistas. Uma visão triste. Suspirei mais do que respirei. O lugar é tão menor, tão mais baixo do que a minha lembrança. A gangorra tem lascas, os pneus que a acomodavam foram totalmente enterrados no solo. As correntes dos balanços estão gastas, enferrujadas, desalojadas dos elos. A areia parece muito mais suja, escura. Cheguei a me arrepiar e meus olhos ficaram ainda mais molhados. Tremi enquanto dava goles mal-calculados no café; o céu-da-boca está descamando até agora com as queimaduras. Eles disseram que há cafeína demais na minha corrente sanguínea e a falta de um tempero de verdade na minha vida. Eu retruquei que me deixassem em paz pois eu estou bem, apenas surpresa por ainda estar sozinha. Talvez nem tanto. Eu estou ocupada demais sendo existencialista aos poucos e arregalando meus olhos, erguendo as sobrancelhas e mordendo os dentes pra me preocupar com qualquer pessoa. Deitei de novo. Senti um vazio muito grande ao encarar o céu - o céu continuava igualzinho ao da minha infância, apesar de eu dar muito mais atenção para ele, ou Ele, hoje em dia - e perceber por fim que nenhum local é realmente sagrado. Nenhum refúgio está a salvo da ira dos homens, ou pior ainda, do tempo. Nenhuma escadaria vai durar enquanto pisarem nela. O local onde nós nos vimos pela primeira vez era uma cafeteria e agora é uma loja de roupas. Nós nos beijamos certa vez em uma mesa que não existe mais, foi substituída por um modelo mais moderno, mais futurista pra combinar com o resto da decoração do lugar. Uma vez eu deitei no seu peito e nem ele existe hoje, e eu ficaria muito mais confortável em saber que aquele lugar onde eu sofri e me deliciei tantas vezes virou pó. Mas não. Seu corpo não é sagrado. Seu corpo, meu refúgio, hoje se macula numa cova rasa, certamente invadido de larvas, de terra, só uma cavidade vazia onde antes ficava o coração que me amava tanto. E o pior de tudo é que o lugar mais sacro de todos é a minha mente, e esta também, sinto dizer, já foi arruinada há tanto tempo que mal consigo me lembrar como era antes de eu chegar.