quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Brusilovoffensiven, II.

Acordei tossindo barbante. Era cedo, ainda escuro, céu azul-marinho sem estrelas; todos os pássaros estavam longe, sem cantar, bebendo para afogar as mágoas. Me pergunto agora quais mágoas pode ter um passarinho, aquela coisa tão pequena, tão encantadora, e sei que às vezes as pessoas pensam isso de mim. Não sou pequena nem encantadora, mas que mágoas pode ter alguém como eu?, porém só sei que tanto eu quanto o passarinho sentimos muito, senhoras e senhores.

Recoloquei meus olhos no lugar. Minha cabeça estava toda às avessas, de trás pra frente: eu corri a noite toda do pequeno esqueleto faminto pela minha carne, mas eu fugi com os olhos nele e a nuca guiando o caminho. Tropecei, ralei os joelhos; sangrei caramelo que infestou o chão acarpetado com pequenos cristais vermelhos donde, um dia, nascerá um prédio que comportará um banco, uma lanchonete e uma agência de publicidade. Novamente erguida, eu me permiti deitar nos braços de nuvem do meu perseguidor carniceiro, mas ele não me abocanhou, famigerado: me envolveu inteira, curou minhas mazelas e me cobriu de fumaça branca, espessa, gelada, cheirosa, e assim eu dormi. Lá quando amanheci ele não estava mais. Meu amor. Meu inimigo.

É a minha oitava pílula e não é nem quarta-feira direito. Claustrofóbica, intoxicada, eu me curvo diante do sal grosso clorido, forçando-me a enxergar dentro do escuro. A cabeça dói novamente. Sou uma conformada, refugiada, mal diagnosticada e ignorada. Sempre três passos a frente da margem, correndo da correnteza, pés leves.

Só me aquieto nos seus braços de flor. Sou fascinada pela sua boca de amêndoa. Não me acostumo com seu cheiro de limão. O meu amor.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Brusilovoffensiven, I.

Meu nome é Jane quando penso nele. Eu sou a donzela indefesa, corajosa e confiante; eu sou talentosa e segura, volúvel e frágil; meus olhos inspiram intimidação, minhas mãos são finas e arroxeadas nas pontas e tremem com intimidade na presença dele; sou forte e marcante e me falham os joelhos quando ele me olha. Meu nome é Jane, Elizabeth, Anne, Emma, Catherine, Marianne, Fanny.

Eu já me matei mil vezes dentro de mim; troquei de pele como uma cobra e de alma como um anjo. Guardo minhas asas formadas por liláceas murchas enquanto aguardo a intermissão da minha existência. Ele chega, tira os tecidos dos meus ombros de constelação, aperta as palavras que eu nunca ousei clamar como minhas, gravadas no eco do oco dos meus ossos. O hálito gelado não toca o ar ao meu redor e se aninha nos meus cabelos. A boca bem por último com a suavidade de um trem descarrilhado. Meus olhos afundam e caem no cano enferrujado da minha laringe pra pousarem como plumas a anos-luz do fundo de mim, infestado de ervas-daninhas. Viram mariposas brancas.

Meu amor me engole, leva tudo de podre que há de mim com ele. Mastiga com dentes de algodão e me cospe em ouro líquido e cinzas, só pra eu nascer dele e dele de novo; meu amor é placenta, é açúcar, é sangue e esmeralda. Nasço toda vez que mais uma vez ele volta, só pra me purificar em trevas e me amar no chão.