quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Recitativ.


"The beginning simple, almost comic."

Eu nos imagino. Constantemente. Eu imagino nós dois sentados juntos em um caixote. Sabe aqueles caixotes que sua irmã deixa na parte de trás do bar pra ter onde sentar quando precisa dar uma respirada mais funda? Nos imagino lá. Sentados os dois naquele caixote maior, com alguma palavra importada escrita em preto na madeira já meio podre, meio capenga. Mas nos sentamos sem medo. Tu bebes. Eu observo. Tu te recusas a reconhecer meus olhos e eu me recuso a tirá-los de ti. Tu te constranges; eu não. Eu me divirto no teu constrangimento, eu acho graça na tua graça sem graciosidade alguma. Eu penso em várias coisas, como sempre, eu tenho muito em mente, eu tenho muito o que pensar e muito o que decidir, mas no fundo eu sei que é tudo besteira e que eu só estou pensando em ti. Calculando teu pomo-de-Adão. Analisando a gaze presa à tua testa com esparadrapo e aliviada eu suspiro, quase sorrio, pois finalmente ela não está vermelha. Tu finalmente me olhas, fingindo malemal uma indiferença, desapercebição, e sem dizer nada, tu me abres uma garrafa também. Me entrega de má vontade, quase, e volta a olhar pro outro lado da rua. A janela do apartamento da tua irmã está fechada e por entre as frestas do batente da janela tu consegues ver luz. Sabes que ela está com meu melhor amigo lá. Te irrita. Resmunga, resmunga, resmunga. Não me olha. Eu gosto do jeito que teus dedos ficam brancos quando tu seguras a garrafa gelada com força. Eu amo.

"Just a pulse. Bassoons, basset horns, like a rusty squeezebox."

Tu finalmente te viras pra mim, como se não me conhecesse e quisesse puxar papo. Eu prendo um sorriso, eu mantenho a boca ocupada no gargalo para não parecer boba demais, mas presto atenção em cada palavra. E tu falas. Falas resmugando, entrecortado, baixo, animalesco. Em dois minutos tu já falaste mais comigo do que falou em uma vida inteira com a tua irmã, ela diria. Ela diria: "Pombinha". Eu diria: "Rouxinol" e ela quase choraria de saudade e nostalgia. Acho que tu és um Menuetto. Ela é um Allegro ma non troppo. Eu sou um Adagio. E juntos somos uma Gavotte. Perdi o raciocínio do que tu estavas dizendo pois acho tua boca tão linda quando se move mas é tão fútil só te ver por fora enquanto tu te expões pra mim, então eu presto. Tu estás reclamando das mesmas coisas que reclama sempre. Da irmã, do amigo, do clube, da cerveja, do machucado, dos alemães. Nunca te vi reclamar de nada além disso. Ah, minto. Reclamas de mim com frequência, mas não é a mesma coisa. De mim tua reclamação é só sobre amor. Queres que eu te ame menos. De todo, não é ruim. Mas pedes que eu te ame menos e por menos tempo. Todo o tempo. Mas eu não tenho culpa. Sabes que eu tenho a língua afiada e molhada; as palavras simplesmente escorregam dela. Eu não posso controlar. Sinto tanta necessidade de te apertar os ombros. Puxar tua pele das costas da mão até onde vai. Morder toda a linha do teu maxilar até chegar no teu sorriso. Não sentes falta, eu te pergunto, não sentes falta da semana em que nós acordamos juntos? Não, não pergunto. Minto. Nunca acordamos juntos. Eu estou confundindo lembranças e sonhos de novo. Deixa pra lá.


"Then suddenly, high above it, an oboe. A single note hanging there, unwavering."

A cerveja acaba. A garrafa já está quente. Eu ainda te amo e se todo mundo ficar bem quietinho, os gemidos da irmã e do melhor amigo são audíveis. Ele se ofende contigo, sabe? Sente ciúmes. Ciúmes porque passou a vida comigo e te trouxe até mim e tu és meu dono agora. Não nesses termos, talvez. Não és possessivo nem nada, muito menos me queres. Mas ele sabe que eu o deixaria por ti. Ele é meu melhor amigo, teu melhor amigo, mas eu sou uma idiota. Tu também. Ele também. Ele largaria tudo pela tua irmã. Mas estou divagando, qual era mesmo o assunto? Ah, sim. Tua boca. Teu maxilar. Teus ombros e braços que eu conheço tão bem e estudei tanto por baixo do couro nomeado. Jogas a garrafa num canto. Agora tu fumas; eu observo. Tuas maçãs do rosto, teu nariz, a fumaça, como tu franzes o cenho e olhas pra janela com indignação. Bufas. Resmungas. De súbito é que eu noto que tu estás sentado mais perto agora.


"Until a clarinet took it over and sweetened it into a phrase of such delight!"

Pões o cigarro na frente da minha boca. Quase convidativo. Eu trago, tu observas. E aí tu sorris. Não muito, não articuladamente. Só com os cantos, os olhos. E não tardas a encostar o braço no meu e praticamente implorar pra que eu deite a cabeça na volta do teu pescoço. E aí eu não digo nada. Tu não dizes nada. Ninguém na rua diz nada. São quatro da manhã: quem tem algo a dizer às quatro da manhã que não possa esperar pelo nascer do sol? Eu estremeço, me beija, por favor, junto as mãos em prece entre os joelhos, por favor, e num movimento tu expulsas minha cabeça delicadamente apenas pra tirar o couro rude, e jogas a jaqueta pro lado, e eu posso deitar de novo e sentir a pele, o cheiro, o quente, e posso segurar tua mão, Cristo, tu permites que eu segure tua mão e conte as linhas da palma e memorize as nuances das cores das veias por baixo da tua pele ridícula. E eu não digo nada, mas passo o dedo pelas tuas veias com tanta delicadeza! E tu sentes na nuca o quanto eu te amo. E não podes ignorar isso. Não me beijas. Mas não me ignoras. E eu bem sei que isso é a maior declaração de amor possível a ti.


"It seemed to me that I was hearing a voice of God."



Tryck bort.

Ela jamais gostou de usar reflexos pra justificar qualquer coisa. Mas às vezes é complicado, às vezes é difícil segurar a vontadinha que dá de sentir pena de si mesma, afinal sempre tiveram um apreço especial por jogar tudo nos ombros dela. Ela aguenta. Ela aguenta, vão te dizer, caso tu sejas o primeiro a defendê-la. Ela é aquela musa da música machista implícita, aquela que apanha e pede perdão por isso. Ela é aquela que chora baixinho, sozinha, num quarto, com a luz branca da lua nos seus olhos, enquanto escorrega pela porta, embaraçando o cabelo, deixando a mão soltar sozinha da maçaneta e ali ficando. Ela é a que carrega todos nos ombros, mas ninguém leva nenhum peso dela. Ela não tenta jogar peso para ninguém, mas se tentasse, cairia por terra. Ela não esconde lágrimas porque não faz diferença, ela não chama atenção, ela não manifesta pena, ela não manifesta misericórdia, ela não acorda a piedade dos outros. Não crê mais no carinho dos outros, por isso quando ele a toca ela sente o corpo inteiro recuar automaticamente pois é apenas isso que ela conhece e ela não nota enquanto ele se afasta e ela estende a mão e implora e chora e pede para que ele a toque de novo. E ele a machuca e a fere e a joga e a mata quatro vezes antes da meia-noite e ela não se importa porque acredita, piamente, que é só o que lhe resta, que é só isso que o mundo apresenta. É difícil não se penalizar diante de alguém que vive de joelhos, mas ela tem olhos dissimulados, fechaduras de prostíbulos, mãos magras e venosas demais, uma boca meio pra esquerda que não inspira simpatia e acaba por ser a vilã do próprio melodrama, mas ele gosta dela.

Ela é uma Geni e ele é Jasão e a Bárbara não para de falar no ouvido deles.

Vogue.

Eu dormi por mais de doze horas. Minha visão está turva desde que eu acordei e minha cabeça lateja a cada movimento brusco que eu faço. Lá fora, chutando, deve estar uns 15 graus... E vai chover, isso com certeza. Ou já está chovendo, não sei. Não me propus a ir lá fora e nem vou. Mas está friozinho, aquele frio que dá vontade de colocar uma meia ou algo assim. Eu estou pensando no ano passado. No dia em que eu, com o cabelo bem mais curto que isso e muitos, muitos quilos a mais, algumas doenças a menos, sentei acompanhada em um banco de madeira charmosíssimo às margens do oceano Atlântico - à beiramar, cara! - e falamos pouco. Ela tentando acender aquele isqueiro na chuva foi uma das coisas mais adoráveis do mundo. O seu cabelo estava bem sujo, mas o meu também, e eu não me lembro de tê-lo escovado naquela semana. Eu lembro que estava com enxaqueca e cólica e quase não falei nada, e ela beijou minha testa e fez carinho com as unhas no meu cabelo e naquele dia ela decidiu que eu não a amava mais. A última vez que eu o vi foi três meses antes e a última vez que nos falamos foi um mês e quatro dias antes. Ele me abraçou e me beijou na bochecha e sorriu como sempre sorria quando nos despedíamos - triste, mas agradecido por eu estar ali, ao menos - e eu o beijei com os lábios de Rogue 44 e ele me impediu de passar o polegar pela marca. Acho que o motivo pelo qual eu nunca mais me dispus a comprar um batom daqueles é porque me lembraria muito dele; eu sempre o cobria com marcas vermelho-sangue com o shape da minha boca. Quando eu penso em todas as bocas que já cobriram a minha desde a dele, eu não consigo deixar de sentir uma ponta de vergonha, de decepção e de arrependimento. A boca dele foi a melhor, mas provavelmente esse sentimento é só mais uma das minhas fossas mórbidas causadas pela ausência dele. Não que ele não fosse um dos seres mais maravilhosos que eu já vi, claro que não, longe de mim sequer sugerir isso, mas às vezes eu penso que eu não o colocaria nesse pedestal tão alto caso ele não tivesse sido arrancado de mim. Coisas que a morte causa. Ele foi o primeiro que me mostrou, sem querer, que a dor psicológica pode se transformar em física, passando pelos meus braços, cortando minhas veias por dentro, fazendo meu peito pesar mais do que qualquer fêmur ou crânio.

Quando eu penso em todo o tempo que perdi com ela, quando eu poderia estar sendo amada de verdade.
Quando eu penso em todo o tempo que perdi sem ele, quando eu poderia estar sendo amada de verdade.

Taskig postmodernism.

São cinco da manhã e eu perdi a paciência com o tempo. Não é justo que eu tenha que esperar enquanto os outros se movem, sabe quando tu queres passar num corredor meio lotado de shopping e um grupo de gente lerda está justamente na tua frente, e tu tentas passar pelas laterais, pelo meio, por cima, por baixo, mas acaba por desistir e andar no mesmo passo
v a   g     a       r      o       s                     o
e enquanto isso as geleiras da Antártida já derreteram e solidificaram de novo e foram manchadas com petróleo arrombado e tu lá, esperando aquela gente se mover, e tu pensas "Caralho, que que eu tô fazendo aqui?". É como eu me sinto, só que salvando as devidas proporções, porque eu não sou impedida por ninguém, só por mim mesma. Eu podia levantar a bunda dessa cama e fazer alguma coisa, sabe, eu podia pentear o cabelo, eu podia começar a fumar, eu podia parar de fumar, eu podia tomar uma cerveja escondida e cortar as costas da minha mão pra dizer por aí que eu tenho uma cicatriz, fodona que sou, eu podia levantar da cama ao menos pra desligar a porra do despertador, mas a música é boa, escolhida a dedo, e daqui a pouco ele vai entrar no modo Soneca e eu vou ter que forçar meus olhos a ficarem abertos porque se eu piscar serão sete da manhã e eu terei perdido o período da aula de Espanhol - que eu não frequento mas uso como momento de meditação - e a culpa seria claramente tua, afinal eu não dormi ontem por tua culpa. Tu nem sabes meu nome, na real, mas a culpa continuaria sendo tua porque não existe outra razão, não existe outra pessoa, não existe outra dor de cabeça. Cinco e quinze eu já estou pronta e o ônibus só vem depois das seis e meia e eu quase volto a dormir porque caralho, meus olhos estão inchados e fechando sozinhos e eu já estou na segunda, terceira, quarta rodada de café naquela caneca que me foi comprada em Barcelona, meio nas coxas, mas com carinho e de coração. Eu sento no pufe no meio da sala, virada de costas pra televisão e de frente pras cortinas blecaute fechadas e penso "Hoje vai ser uma merda" e já dou um sorrisinho sabendo que isso é mentira, levanto os braços acima da cabeça e vou curvando o corpo até tocar o chão e lembro que não fiz alongamento e dar uma de bailarina foi uma péssima ideia, caralho, minhas costas doem e estralam e param e eu decido que nunca mais vou me levantar do pufe, por mais que me suba o sangue ao rosto, ao cérebro, ao nariz redondo. Vou virar uma vivant excéntrique da vida, aparecer no jornal, noticiário e manchete de fofoca, vou me recusar a levantar daquele pufe até que tu venhas e me busques e cuide de mim como eu sei que mereço, porque eu já me arrombei muito pra precisar, além de tudo, no topo de tudo, ter que correr atrás de ti. Não me mereces, também. Já fiquei tonta e levantei do pufe há tempos e já são quinze pras seis.

Pulo pra parte interessante e começo a pensar, já no ônibus, por que infernos eu te curto tanto. Não tens nada de especial, não és obviamente bonito, não és tão inteligente assim, aposto que não sabe jogar Medal of Honor e eu te ganharia numa partida de Ludo Real numa facilidade louca. Tu me quebrarias ao meio numa corrida e certamente num concurso de "Quem come mais pedaços de pizza", mas acho que não há desvantagem aí, e eu e tu seríamos um páreo bom na hora do sexo, porque eu realmente não sei quem teria mais problemas de acompanhar o outro, porque eu sei que tu és pior na hora da competição do que eu, e eu tenho que parar de me desafiar o tempo todo visto que eu já passei do limite trinta e quatro vezes e fica difícil decidir quando eu agrado e quando eu me queimo. Seis e quarenta e dois da manhã, céu de nascente, cor de tangerina, cor de vitamina, cor de xarope de groselha.

Você
duas sílabas casadas
em degradê
Talvez sejas tu
Tu
monossílabo
quieto e manso
solitário como eu gosto que tu sejas, como eu espero que tu sejas.

Vou muito com a tua cara e o papo está muito bom, mas o céu está com cor de limonada rosa e eu preciso lembrar o nome daquele filme que prometi. Volto a pensar em ti mais tarde, parada num pufe de concreto numa rua cujo nome eu desconheço, e o sol mal nasceu e as luzes da rua nem apagaram ainda, mas eu já estou pensando em ti, e eu não consigo lembrar se fechei a janela do meu quarto no caminho de saída.

En vecka för två.

"(...) Ontem eu voltei do Novo México e chorei toda a marina do meu corpo pra manter vivas as águas-vivas. Achei que as pobrezinhas não sobreviveriam a uma viagem de estrada de quarenta e cinco minutos, quanto mais sete horas de voo, mas viveram, eu vivi. Vim, vi e venci, até chegar o Brutus, que foi uma metáfora pra nossa história de amor que não foi bem amor, porque não se trata um amor como se trata todo o resto e ela não conseguiu evitar. Não sou uma qualquer, porra. Eu queria lembrar quem foi que me disse que, se os olhos são as portas da alma, as minhas pupilas seriam como fechaduras de bordéis, e agora eu concordo, quando o sufoco e arranho e costuro meus lábios nos dele enquanto me vingo dela, da vida e do fato de não entender a Bovespa, e por considerarem geologia uma ciência e que a meia-calça sempre desfia no joelho. Ele serpenteia e investe, mas não me toca, não me é gentil, e acho que isso é ainda pior. Ao menos eu tenho o consolo de não amar ninguém, mas honestamente, eu amo todo mundo, não vejo vantagem e não me corto porque não quero cicatrizes pós-hormonais, mas tudo bem. Porque na manhã seguinte, o céu se tinge de novo e eu tenho um dia a menos pra reclamar dele, das águas-vivas, do Robert de Niro e da bolsa, e quem sabe um dia eu me canse e fadigue de tanto ser."

9.

Essa porra sobre não querer sentir nada me irrita. Como é que ousam dizer que tudo na vida seria mais fácil se ninguém sentisse nada? Coisa de pré-pubescente mimado, isso sim. Não sabe lidar com as frustrações e decepções que inevitavelmente vêm com as relações humanas e querem, para variar, o caminho mais rápido, mais simples. Porra. Põe a cabeça no lugar, criança: a mente humana é bem mais que isso, você só não sabe. Eu vivo me surpreendendo comigo, acordo de manhã em um dia qualquer aí e antes mesmo de me tocar que estou viva, eu lembro de alguém que costumava ser o centro da minha vida e na manhã daquele dia qualquer significa nada, ou menos que nada, menos de menos. Aí eu tento lembrar como é que essa merda aconteceu e percebo que foi puramente uma combinação de cansaço emocional constante (aquela palavra legal, Haggard) e distrações babacas, qualquer coisa que ocupasse o lócus do meu foco lógico, transformando aquele ser e tudo o que ele representava em memória de longa duração ao invés de curta e, misturando-se aos meus traumas de infância e a matéria de Ciências da sexta série, tornado-se um borrão cinza insignificante num rodapé do meu cérebro. Não sinto orgulho, apesar do efeito ser positivo. Não deixei aquela pessoa para trás por opção, apesar de saber desde sempre que aquela era o melhor pra mim. Não foi minha vontade, por bem ou mal; minha mente fez sozinha um trabalho que deveria ser voluntário. Pondero prós e contras e algumas estatísticas que eu invento na hora, dadas essas novas circunstâncias - ah, a saudade - e planejo o que fazer com essas informações resgatadas do meu subconsciente. Vale a pena tentar buscá-la de volta? Será que eu ainda estou na memória fresca dessa pessoa ou sou eu também um borrão incolor para ela, que provavelmente ainda está adormecida por agora e certamente não sonha comigo? Reduzi-me a isso? Daí vem o Orgulho impondo que é inadmissível que eu não signifique nada para ela. Começam os sussurros de revoluação, o partido vermelho querendo foder aquele sistema tão vulnerável e frágil, criado meio ao acaso; e eu nem abri os olhos ainda. Meio em estado REM, meio alerta, os anjos e demônios de mim despertam e brigam, os fantasmas voltam, o Orgulho briga com a Vaidade e os borrões sharpenizam-se e tomam forma, cor, volume, cheiro, gosto, textura, PORRA! É quase um orgasmo e não são nem nove horas, o despertador não tocou e eu nem sei porque acordei. Vale a pena? Vale, e como, porque saudade dói e o Orgulho sempre ganha, mas acima de tudo, a preguiça. Lembro-me do cansaço, da exaustão psicológica e não quero pagar uma terapeuta gorda chamada Paloma para jogar na minha cara que o ciclo vicioso no qual eu estaria presa daqui a seis anos e doze quilos mais magra foi criado por mim, e não pelo meu subconsciente, que no fim das contas foi meu amante e meu melhor amigo. Viro para o lado e volto a dormir. Às nove horas o despertador finalmente toca e eu já não lembro de nada.

Paradox trappa.

Eu vou contar um segredo ou dois que estão me deixando quase doente.

Ter noção das coisas é um lixo. Eu tô com tempo demais pra pensar na vida agora que o Meu Ano acabou, e como diz o ditado, mente vazia é a oficina do Diabo. Não sei se é, mesmo, com toda a convicção atéia que eu tenho, mas eu sei de uma coisa: uma mente sã vira do avesso quando tem tempo consigo mesma. Eu tenho me colocado, consciente e espontaneamente, várias e várias e várias vezes diante de um espelho moral e psicológico que está ferrando minha vida mais do que ajudando. Eu notei que eu tenho consciência demais das coisas que eu gostaria de poder ignorar. Que a ignorância é nojenta, mas a plena noção é maldita. A sensação é que nada do que eu sinto é real, pois eu sei a origem de tudo. E a sensação é de que eu sou muito burra e/ou muito filha da puta pra sofrer tanto com as coisas que eu sofro, visto que eu sei que logo passa e eu consigo colocar em perspectiva.

Tá confuso. Sei disso. Vou tentar explanar: eu sei que é tudo hormonal. Todas as decepções épicas e frustrações helênicas, todas as batalhas que eu travo comigo mesma e com quem me rodeia, todos os corações partidos, as excitações e as tristezas, os pensamentos suicidas e as atitudes autodestrutivas, a preguiça, a vontade, tudo, tudo isso é resultado de dezesseis anos culminando em hormônios e outras coisas que eu tenho até medo de saber. Eu me apaixono e culpo os feromônios, ao invés de culpar a perfeição grega que é o outro. Eu vejo perfeição, eu anseio por ele, eu penso nele dia e noite, eu sou cega pra qualquer outra pessoa: mas eu sei que é ação dos hormônios. "Coisa de adolescente", digo eu, como se tivesse quarenta e cinco anos e planejando a primeira operação de botox. Eu me frustro e culpo os hormônios por ficar tão triste. Eu choro, eu sinto dor física, eu grito, eu me desespero, eu perco o controle, e sei que é por minha culpa; mas quando tudo passar - a adrenalina, a dor, quando as lágrimas secarem - eu vou me sentir patética por ter perdido todo aquele tempo esperneando por algo que eu sabia que seria passageiríssimo, ridículo e insignificante. "Botar em perspectiva" é o que eu mais faço. Não me comparo a outros, claro: aquele papo de "Não chore por um coração partido enquanto tem criancinhas morrendo na África" nunca foi a minha praia, tampouco funciona. Acho que sou insensível demais pra isso. Mas eu paro por alguns segundos e prendo a respiração, cerro os punhos, sinto meu sangue correndo carregado de podridão por todo o corpo, fecho os olhos e penso: "Essa porra não vale a pena. Essa porra vai passar logo. Essa porra não merece teu choro, guria" e simplesmente paro. Paro de chorar, de sofrer, de me magoar e de me importar, simplesmente por saber que é tudo químico. Começo a achar até cômico.

Rir das decepções e das insanidades que me rodeiam está se tornando hábito cotidiano, o que é muito triste, muito prático e muito imbecil.

Eu não quero tirar minha responsabilidade sobre as coisas, não me entendam mal. Eu simplesmente não consigo mais sentir a dor de antes, não consigo gostar de tudo como eu gostava antes; e, ao mesmo tempo, eu nunca fui tão intensa e entregue em toda a minha vida. Parece que a minha vida virou uma função cosseno, e eu estou no ponto mais baixo possível. Eu não consigo mais nem me conectar às pessoas do jeito que eu fazia. Eu me entrego a elas, confio rapidamente, tudo como antes. Porém, hoje, as pessoas vêm com prazos de validade estampados acima dos olhos pra mim. O relacionamento vai acabar e eu sei prever quando, como e por que. Não é a mesma coisa. Não há dúvidas. Não há surpresas. Não há nem decepções, com esses que chegam agora. Eu corto pessoas da minha vida com mais facilidade, porque as cordas que as prendiam aos meus pulsos não são mais tão firmes, nem tão grossas, tampouco tão pesadas. Eu simplesmente as balanço e elas vão saindo, e eu mal percebo. Não sinto falta. Pra mim, está tudo bem. E, ao mesmo tempo, não é egoísmo, pois eu continuo sendo a "irmã mais velha de todos", como sempre fui. É uma escada do paradoxo.

Eu entendo as origens. Eu entendo as dores e as ignoro. O tempo que demora pra você se recuperar de uma decepção é inversamente proporcional à quantidade de vezes que você se decepciona. No meu caso, é uma quantidade colossal. Eu fico triste, eu fico feliz, mas eu não acredito que sejam sentimentos de verdade. Eu me sinto plástica, sintética. Tudo que eu faço é real, mas é frágil demais pra ser real e eu conseguir me apegar por muito tempo. Sempre preciso de um thrill novo, ou eu caio na melancolia de novo. Não quero voltar a ser daquele jeito.

Mas ser racional demais cansa.

Ou, talvez, só talvez, eu seja a mais insana de todos os seres humanos. O que, sinceramente, não seria surpresa pra mim.

Kaffe.

A sensação de alguém estar enfiando uma moeda lentamente no meu cérebro. Eu me sentei no sofá e levei a mão a testa, rezando sem crença para que a dor sumisse; não sumiu. As luzes do apartamento, os sons da rua a dezesseis andares de distância, o vizinhos de cima jogando videogame, tudo, tudo doía. E rodava. E enjoava. E eu não conseguia comer, porque meu estômago rejeitava. Era como se meu corpo estivesse se voltando contra mim. E a moeda atravessava minha cabeça e voltava.

O meu celular começou a vibrar e eu tive que ponderar mentalmente se valia a pena me mover para atendê-lo. Abri os olhos devagarinho e vi o nome dele no visor, estiquei os dedos e atendi. Eu não precisei falar nada além de "Alô" para que ele notasse que havia algo errado. "Você quer que eu vá até aí?", ele me perguntou. Eu balancei a cabeça negativamente e pensei em negar, mas minha boca disse "Por favor, sim" e ele desligou, tarde demais para que eu pudesse mudar de ideia. E não seria ruim tê-lo lá, um pouquinho, uma companhia, só um pouco.

Ele chegou em cinco minutos, sabe-se lá onde estava antes, e praticamente arrombou a porta da frente, delicado que era. Eu permaneci com os olhos fechados, mas sorri. Eu o senti quando ele se ajoelhou na minha frente e passou a mão pelo meu rosto, afastando o meu cabelo. Eu o senti quando ele se sentou ao meu lado e me deitou no peito dele e me aqueceu um pouco. E quando eu desmaiei, eu continuei o sentindo. Eu não lembro do que ele fez, mas eu sei que eu o senti até acordar. Acordei na cama e o vi: ele havia carregado a poltrona da sala (e não arrastado, porque ele sabe que eu o mataria) até o meu quarto e estava ali, dormindo, em toda a sua perfeição. Eu estiquei o braço e toquei a mão dele; ele despertou e sorriu, esfregando os olhos como uma criança. "Você parece melhor", ele me falou, quase bocejando. "Eu estou melhor", eu respondi, ainda feliz e me sentindo uma adolescente por ele estar ali.

Ele me fez café-da-manhã enquanto eu assistia o noticiário. Eu não lembrava o quanto ele cozinhava bem, mas o cheiro dos ovos mexidos com café me lembraram rapidinho. Eu estava faminta, fraca nas pernas, mas ligada em tudo. Sentei-me no balcão e observei enquanto ele terminava os pratos. "Você é praticamente uma dona de casa", eu disse. Ele me passou uma caneca fumegante de café. "Você é praticamente o homem da casa", ele me respondeu, sentando-se na minha frente. "Cale a boca e beba seu café", eu falei, concentrando-me no cheiro. Silêncio por uns instantes. "Onde você estava ontem?", eu perguntei, timidamente. Ele fez aquela carinha de "Vergebung?" que sempre fazia. "Ontem. Quando me ligou e eu pedi para que você viesse. Onde você estava?". Ele olhou para a janela, para a caneca, sorriu e olhou para mim. "Com meus pais", ele respondeu, e eu senti os olhos abrirem mais e mais e meu rosto queimar. "Eles vieram me ver anteontem e nós estávamos jantando. Mas não tem problema", ele completou ao ver o que provavelmente foi meu rosto contorcendo-se em indignação. "É claro que tem problema", eu disse. "Não, não tem. Eu não teria ficado bem sabendo que você estava aqui, sozinha e passando mal". Eu me afastei até minhas costas tocarem o encosto da cadeira. "Mesmo?", "Mesmo".

Ele não tirava os olhos de mim, meio que esperando que eu reagisse mais, brigasse mais, e eu normalmente o faria se não estivesse tão cansada. "Pare de me olhar", eu falei, mesmo não estando olhando para ele. "Por quê?", ele respondeu. Eu virei os olhos para ele e indiquei com o queixo: "Cale a boca e beba seu café", eu repeti. Ele bebeu e foi minha vez de observar enquanto eu via o seu pomo-de-Adão se mexendo. "Pare de me olhar", ele disse com a boca ainda dentro da caneca. Eu coloquei minha caneca no balcão e tirei a dele devagarinho da mão dele, inclinei-me e o beijei.

Eu lembrava da primeira vez que havia o beijado, anos atrás, eu lembrava do gosto da boca dele, e eu senti aquilo misturado com o café que ele havia feito. Era muito bom. Ele me olhou com aqueles olhos ilegais e quase engasgou. Nenhum dos dois conseguia pensar em nada para dizer, e o pior: nenhum dos dois conseguia se lembrar que porra de motivo absurdo tinha nos separado. O que de tão ruim podia ser que tivesse feito com que nós não estivéssemos mais fazendo aquilo todos os dias, o tempo todo? Ele me puxou de novo e me beijou e eu procurei me lembrar: não me lembrei e continuei. "Eu amo você", ele me disse. "Eu sei, eu sei", eu respondi, incapaz de produzir uma resposta decente. "Fuja comigo", ele me pediu. E de repente me acertou, a memória, e eu vi tudo que havia acontecido antes. Era isso. Foi exatamente isso que ele havia dito, e na última vez eu disse Não. Devia haver um motivo muito forte, mas eu olhava para o rosto dele e não conseguia imaginar nada. Não, não havia motivo no mundo que me impedisse. "Claro", eu disse, e me senti completa. Era essa a ideia de felicidade que eu tinha? Sentir-me completa, sem nada faltando, tudo no lugar. Ele sorriu com os dentes retos e eu senti o gosto de café mais uma vez...

E é só isso que eu consigo me lembrar.

Spara dina handleder till slutet.

De certa forma, vocês estão ligadas. Por pensamento - "estava pensando em ti agora mesmo!" - por segredos que só vocês sabem, por frases que uma completa da outra, por gostos semelhantes, por simples afinidade e pelo fato de se amarem tanto, tanto. E isso tudo é muito bonito, sabe? Estar conectado a outro ser humano de uma forma tão simples. E todos veem, e todos acham bonito, e todos queriam ter algo como o que vocês têm.

Stop. Rewind. Stop.

Não. Você para e chora, e olha para as suas mãos cheias de sangue e aperta os lábios para que o seu pranto não acorde ninguém; até porque o único momento em que você não está falando com ela é de noite, de madrugada, quando todo mundo está adormecido e você está lá, patética e frágil, encolhida e chorando. Chorando. Você sabe que é ruim, e se assusta a cada vez que alguém diz que acha belo, como se tomasse um choque (de realidade, é claro), mas depois pensa que é normal: vocês maquiam tudo muito bem, a parte pública é sempre brilhante. Plástico. Mas você sabe, ah, você sabe a parte obscura, criatura miserável, e você sabe o quão mal você se sente por ela. O quão mal se sente quando vomita suas verdades naquela consciência frágil e o quanto tenta provar a ela, e a si mesma, que você é forte, durona. Aço. Mas você não consegue deixá-la. Você não consegue não fazê-la mal e fazer-se mal. Não consegue olhar pra trás e lembrar-se como era antes dela. Então você continua. Influenciando e deixando-se influenciar e fazendo-se mal, e mais mal, a cada dia. É terrível, é feio, é foda. Mas você não sabe outro jeito, sabe? Que bom.

Go on. Go ahead.

Você abre os olhos de novo, solta os lábios e respira fundo. Isso, calma. Sente correr nas veias agora, não sente? Você sabe que vai se sentir melhor. Mas é momentâneo. Logo, você vai tentar sair de novo. Logo, você vai tentar se libertar dessa dor de novo. Logo, você vai tentar achar sua válvula de escape, sua saída de emergência, a pequena escada de incêndio que talvez - talvez - libertaria a sua mente perversa, louca pra machucar e ser machucada. E você tem aquela velha ideia de que talvez dê certo, há uma possibilidade de dar certo, sempre há. Mas você não pode se esquecer: forçar seus pulsos contra essas correntes que te prendem a ela e a todo esse quarto de pânico que é a sua consciência vai sempre machucar. Sempre vai haver sangue. Sempre vai haver dor. Você sempre vai ter que pressionar os lábios, fechar os olhos e tentar, devagarinho. Vai ter que aguentar, porque você precisa sair.

Ou talvez sua esperança não seja mais a mesma de antes. Talvez você não tenha mais força para forçar. Não tenha mais pulsos para pulsar. Talvez sua pele tenha empalidecido demais. Talvez suas olheiras estejam aparentes demais. E as pessoas comentam, sabe. As pessoas vão notar a maquiagem se dissolvendo e o belo se transformando em feio, como sempre foi. E nesse ponto, meu amor, você não tem mais chances. Não vai mais conseguir ater-se às coisas pequenas.

As lâminas vão ter que aumentar.

Mamihlapinatapai.

Talvez você nem saiba, mas eu penso em você o tempo todo. Até quando eu não penso em você, eu estou pensando em você, porque de repente eu me toco que não estou pensando em você e... Bem, você entendeu. E lá estou eu, andando na rua, pensando em você. Eu resolvi sair de casa simplesmente pra poder ouvir música sozinha, sabe. Aproveitar que o tempo estava nublado e dava até pra colocar um casaco leve. Minhas mãos estão dentro do casaco, segurando fortemente meu celular, ouvindo qualquer musiquinha melosa que eu gostaria que fosse a nossa trilha sonora. Qualquer música romântica me lembra você, sabia? Mas enfim, você sabe disso. Mesmo fingindo que nem sabe.

E de repente, eu vejo você. Do outro lado da rua, atrás de um carro preto, você está lá. Eu reconheço você de costas, claro. A maioria das vezes que eu pude ficar olhando pra você, de longe, foi quando você estava de costas. Nunca me importei: eu nunca te olhei pra olhar, eu sempre te olhei pra sentir que você estava perto. Sentir que, se eu tivesse a coragem necessária, eu poderia correr e te dar um abraço, um beijo, te contar que eu sou sua desde o primeiro instante. Mas nunca fiz isso. E lá está você, do outro lado da rua, parado. Tento imaginar todos os motivos possíveis pra você estar ali, no meu bairro, do outro lado da rua que eu por acaso estava caminhando. Começo a pensar no tamanho da coincidência que foi eu ter saído de casa no mesmo dia em que você resolveu sair de casa e nós dois irmos parar na mesma rua, ao mesmo tempo. Não é lindo?

E de repente eu sinto meus joelhos tremendo. Meu corpo inteiro treme, na verdade, com a descarga de adrenalina. Susto, surpresa e um tesão absurdos tomaram meu corpo. Sempre foi assim, você sabe. Por isso sempre fiquei idiota na sua presença. Mas as coisas mudaram daquela época pra cá; estamos diferentes agora. Você não é mais o que era pra mim, e eu definitivamente não sou mais o que eu era pra você. Seu cabelo está diferente. Você parece mais magro. Mas as roupas permanecem no mesmo estilo de sempre. Seu jeito de respirar permanece o mesmo - calmo e devagar - e até seu jeito de ficar parado permanece. Você continua sendo o homem por quem eu me apaixonei.

E de repente eu começo a sentir que tomei coragem. Sim. Eu vou atravessar aquela rua. Eu vou andar até você e vou te cumprimentar. Você vai virar pra mim, abrir os seus olhos cremosos de surpresa e vai me dar aquele sorriso que completa meu dia e que eu não vejo há tanto tempo. Você vai me abraçar, claro, talvez eu beije sua bochecha, se meus lábios não estiverem tremendo como de costume. Vamos dizer aquele "Quanto tempo!" corriqueiro e vamos falar, mesmo sem assunto. Vou perguntar como você está, e eu vou prestar atenção a qualquer coisa que você queira dizer, porque eu me importo com você a esse ponto. Você vai rir de alguma coisa, vai me xingar por alguma coisa e eu vou agir como sempre agi: como se você fosse só mais um na minha vida, mesmo sendo o que domina meus pensamentos, dia e noite. Engraçado como eu sou boa em atuar, perto de você. Ainda assim, me sentirei imbecil e fraca e falando as coisas erradas.

E de repente o não-assunto vai acabar e você vai dizer que precisa ir. Eu vou sorrir e dizer que também preciso fazer alguma coisa, mesmo que a única coisa que eu queria fazer era ficar ali, com você, mesmo sem assunto, mesmo sem dizer nada. Você não precisaria nem sorrir. Eu só queria respirar o mesmo oxigênio que você de novo. A rua está deserta, seríamos só nós dois, certo? E o que mais eu poderia querer do que um tempo só nosso? Nada. Você diria que foi ótimo me ver e sorriria, me dando mais um abraço. Eu te abraçaria forte e sorriria. E antes de você ir, eu te olharia nos olhos, ficaria séria de repente e seguraria seu rosto. Por alguma razão - talvez o costume, a tradição - suas mãos iriam para a minha cintura. Os dois saberiam o que estava pra acontecer, mas nenhum dos dois tomaria iniciativa de início. Você avançaria 90%. Eu avançaria os outros 10% como se você fosse a superfície de um oceano onde eu me afogava. Eu te beijaria com a ansiedade de uma garotinha na puberdade, mas com a intensidade de uma mulher apaixonada. Você me puxaria pra perto. Nada nos interromperia. Em algum ponto, eu pararia, te olharia, nossos olhos guardariam aquele segredo conosco e eu simplesmente iria embora. Sorrindo, é claro. Nada daria errado.

Mas essa coragem dura pouco. Eu continuo te olhando. De repente, você faz menção de virar o corpo na minha direção. Eu viro o rosto, coloco o gorro do casaco, abaixo a cabeça e continuo a andar, mais apressada, torcendo pra que você não me reconheça e não venha falar comigo.

Afinal de contas, o que eu poderia falar pra você?

Lätsinne.

Eu sou patética. Sou, sou, sou sim. Não tente dizer que não. As pessoas vivem me dizendo que não, sabia? Mas eu sei que sou. Eu sei que eu sou patética porque todo mundo é patético. Você é. Eu sou. Ele é. Nós somos. Todo mundo é. Todo mundo. Todo mundo é. É.

Gira. Gira. Gira. 

E as pessoas costumam negar, sabe. Elas fazem um esforço fodido para provar que não, eu não sou patético, eu sou o diferente. Você não é diferente. Você não é porra nenhuma de diferente. Você é um merda, você é um insignificante babaca que acha que vai fazer a diferente: você não vai. Você não vai porque você tem o seu cérebro ligado a coisas mais frívolas do que você imagina. Essa porra de mundo fodido em que você vive não vai mudar. Nem você. E você não vai mudá-lo. Você é insignificante.

Gira. Gira. Gira.

Você sabe como se sentir insignificante? Experimente respirar um pouco o ar de uma noite bem estrelada. Olhe bem praquele céu, aquele céu colossal. Você vê o brilho de uma das estrelas e então pensa: você não tem nenhum controle sobre aquela estrela. Ela pode ter morrido há centenas de anos e você ainda vê o brilho dela. Ela pode estar morrendo naquele instante, mas o brilho dela vai continuar mesmo quando você já tiver morrido, e muito tempo depois. E isso vale para todas as outras estrelas. Você nunca vai ver aquele mesmo céu de novo. Na vida. Aquele minuto em que você parou para admirar já foi. Você morreu mais um minuto. E o mundo não parou de girar, as estrelas vão continuar brilhando, a próxima manhã virá. E se você estivesse morto, isso tudo continuaria acontecendo.

Gira. Gira. Gira.

Você sabe o mundo fodido em que você vive. Você sabe o quão fodido você é. Mas só de reconhecer isso, você já passa a ser um pouco mais são entre os loucos. Você passa a ser da minoria. Os que entendem esse mundo, os que sabem com o que estão lidando. Estes são os piores entre os loucos, amigo. Não há nada pior do que ser de uma minoria sã no meio de um mundo de loucos.

Gira. Gira. Gira.

Para.

Morrem. Morro. Morre. Morto. Tudo morto. E a vida continua. Sem eles. Sem eu. Sem você.

Anteckning.

São três da manhã e eu estou sem sono. Acordei às seis da tarde hoje e duvido que vá conseguir dormir tão cedo. Nenhum dos meus (poucos) amigos está acordado e disponível para falar comigo. De qualquer forma, eu não teria nada de novo para dizer. Subo pra varanda ou deito no sofá? Subo pra varanda pra ver a chuva. Está chovendo há quatro horas agora e não há nenhum sinal de que vá parar tão cedo. Eu queria ter um cigarro agora. Será que sobrou algum? Caminho entre as roupas largadas no caminho, roupas dele, inclusive. Graças aos céus, tem cigarro. Acendo dentro de casa e saio logo pra não deixar meu quarto com cheiro, ele não gosta.

Paro no corredor ao lembrar que não importa mais: ele não vai voltar. Inspiro, expiro, praticamente cuspo a fumaça pra dentro do quarto. Tomara que o cheiro impregne nas cortinas.

Volto pra varanda e começo a pensar em tudo que aconteceu. Por que ele não vai voltar? Onde foi que eu errei? Ou melhor, onde foi que nós erramos? Ou será que só eu errei? Só ele errou? Nenhum dos dois errou? Não entendo mais. Olho para a rua que está sete andares abaixo dos meus pés e sinto uma súbita vontade de abraçá-la. Mas suicídio nunca foi a minha praia. Suicídio é um jeito rápido de morrer, e eu acho que isso é covardia. Prefiro fumar. Ao menos eu morro devagar. De repente me veio a Florence Welch dizendo And I've never felt so alive and so dead.

Meu telefone toca. Eu corro e atendo, óbvio, ainda com o cigarro na boca. Obviamente é ele. Claro que é. Ele fala com a voz grossa e embargada de sempre que me ama. Eu sou uma vagabunda, ele diz, eu sou a pior vagabunda que ele já conheceu, mas ele me ama. Pergunto se ele quer vir aqui, pra nós conversarmos. Ele diz que nunca mais vai me ver e desliga antes de terminar a última palavra. Eu suspiro e percebo que realmente acabou. Eu nos conheço, eu sei que esse foi o último puxão do elástico. Arrebentamos. Forçamos demais e agora acabou a brincadeira. Acabou tudo. Largo o cigarro; não vejo mais sentido em morrer devagar. Suspiro, inspiro, expiro. Já estava na hora de tudo perder o sentido.

Corro, pulo, sinto o vento correr forte no meu rosto. Ele limpa uma lágrima que estava caindo. Sorrio e abraço o asfalto molhado. A chuva para. Tudo acaba.

Kväll.

Tudo que nós precisamos é um ao outro. Não importa onde, quando, como; claro que aquela vez no carro foi um pouco desconfortável e qualquer um poderia ver que nós estávamos transando, mas mesmo assim, foi ótima. Sempre é ótimo. Sempre é quente, sempre é gostoso, sempre é confortável simplesmente porque somos nós, e nós fazemos qualquer situação ficar boa simplesmente porque estamos juntos e somos nós.

E nem precisa rolar sexo. Às vezes ele só pega na minha mão e já me deixa feliz por um dia inteiro. Às vezes ele está lá longe, mas eu o vejo, eu sei que ele está lá, e isso já me deixa confortável. Às vezes ele só olha pra mim, sorri pra mim, e eu já me sinto protegida. Às vezes me abraça, às vezes me deixo abraçar o corpo dele e deitar no peito dele, ouvindo seu coração batendo.

Mas na maior parte das vezes, ele me segura com força, muitas vezes me machuca, mas me faz sorrir. Muitas vezes ele sofreu me beijando. Muitas vezes prendeu meus pulsos juntos e disse palavras de ódio nos meus ouvidos, lembro que ele até chorou uma vez. Talvez porque ele sinta a angústia que eu sinto. Talvez ele consiga ler minha mente às vezes, mas para ele ver o que se passa na minha cabeça seria como ver um espelho, pois tudo lá remete a ele.

Às vezes nós acordamos juntos, deitados na mesma cama, completamente nus, e eu sinto o toque da pele crua dele na minha. Qualquer pedaço de pele meu se arrepia sob a voz dele. Qualquer beijo é como se fosse o primeiro e o último. Ah, quando ele me beija - o mundo poderia cair e eu simplesmente não daria a mínima. O beijo dele é tudo que me importa naquele momento, os braços dele me envolvendo, e de repente ele para, me olha e diz que eu sou tudo que ele sempre quis.

Mas é claro que a manhã chega e eu acordo, e tudo isso se dissolve.

Milonga.

Vamos conversar.

Na verdade, não será uma conversa. Só eu vou falar, você vai ficar quieto e ouvir tudo que eu tenho a dizer. Sente-se mais perto, acenda um cigarro. Eu tenho um isqueiro, se você quiser. OK.

Primeiro de tudo, eu gostaria de dizer que você é a pessoa mais bonita que eu conheço. Você me constrange de tão bonito, você me dá arrepios. Você é tão bonito que mesmo quando eu penso em você, e não no seu rosto, meu coração já acelera. Não sei como lido com você com tanto autocontrole, mas eu lido. Não sei como consigo ficar perto de você sem te tocar, sem te abraçar, sem te beijar e beijar com vontade cada pedacinho de pele que você tem no corpo. Mas é isso que eu faço, todos os dias.

Gostaria também de manifestar meu afeto pela sua voz e pelo seu jeito estúpido de falar. Você se diz um idiota, e é verdade, isso é o que você é. Gosto de você dizer isso e ser isso e ser bom do mesmo jeito.

Mas ficar sem você é um martírio que eu não curto. Como diria o nosso mestre, "amor, e o que é o sofrer para mim que estou jurado pra morrer de amor?". Você sabe que isso entre nós jamais daria certo, nós somos muito amigos para ficarmos juntos. E você, menos defeituosos que eu, jamais aguentaria todos os meus trejeitos e manias e dores e medos e crises. Uma coisa é aguentar como amigo, outra é como amante.

Nós enfrentamos muita coisa juntos. Morte, vida, nascimentos e renascimentos, lidamos com amigos traíras, com amigas bêbadas, com festas impróprias, com um amigo viciado, com um incêndio que aconteceu há anos e com cigarros mal-apagados. Lidamos com um beijo roubado, com uma paixão não-recíproca, com uns professores tensos, com a distância, com a antena de celular inútil, com aquele cara que eu quis pegar e você quis apoiar, mas não conseguia. São anos que eu não posso apagar, esquecer ou ignorar. Mas você está me magoando e isso está ficando doentio. Tudo isso é muito mais do que eu posso aguentar e eu não quero mais isso. Não quero cobranças, não quero mágoas, não quero tristeza. Chega de ligações melancólicas, chega das perguntas inconvenientes, chega das bebedeiras.

Peço desculpas. Mas não posso mais te amar desse jeito. Preciso pôr um fim nessa loucura.

Então, acabou.

Jag gillar dig.

Não porque é o óbvio, apesar de ser. Quer dizer, quem não gostaria de você? Tudo que você faz é bonito aos meus olhos. Às vezes eu olho ao redor e tento ler os olhos alheios, tentando identificar se eles veem em você tudo o que eu vejo. Tanto potencial para a perfeição. Apesar de que perfeição é algo muito relativo, meu amor, e sou bem consciente de que minha ideia de perfeição é bem diferente da maioria.

Minha perfeição é algo simples. Eu quero um lençol branco fino e macio e não uma coberta; não precisarei de uma se eu tiver o teu calor pra me aquecer e me manter protegida. Eu quero uma paisagem verde à Alfredo Wagner, pra sentir o cheiro da grama cortada à força pelo vento frio mordaz, sentir a brisa embaraçando meus cabelos, estes que estarão entre os teus dedos, certo? Eu quero ouvir Chico Buarque suavemente cantando sobre notas surdas e tripas transformadas na primeira lira, sobre janelas de vestidos, sobre bandidos e romances falsos como o nosso, enquanto tu deslizas os dedos pelo contorno do meu corpo como se quisesse memorizá-lo, como se precisasse lembrar da textura exata - e eis que menos sábios do que antes os meus lábios ofegantes haveriam de te dizer assim: "me leve até o fim".

Eu quero um travesseiro que amanheça com o teu cheiro. Eu quero um romance errado que pareça certo. Eu quero um dedo entrelaçado no meu, escondido dos olhares alheios. Eu quero um olhar que eu sei que é reservado para mim; até porque como diabos você conseguiria olhar para outra pessoa do jeito que olha pra mim? Eu quero seu sorriso simples quando ele for de verdade, e isso não é difícil de conseguir, nós sabemos, meu amor. Eu quero escrever algo obsceno num pedaço de papel qualquer e colocar no teu bolso sem que tu vejas, pra que tu leias em algum momento inoportuno e enrubesça. Eu quero que tu saibas qual é minha música favorita, eu quero que tu lembres o nome do meu restaurante predileto, eu quero que tu vejas algo que lembra minha personalidade e sorria, lembrando-se de mim.

E acima de tudo, tudo isso, quero nunca pares de dizer o meu nome, pois ele soa gentil vindo dos teus lábios.

Vacker gyllene lögn.

A pele pálida, os olhos castanhos claros.
Cor de chocolate. Parecem cremosos e mais fundos do que deveriam.
As mãos parecem frias, mas com certeza são quentes.
Um leigo tentaria adivinhar e diria que elas são ásperas, mas ela sabe que são macias.
Toda a extensão de pele dele é macia.
A voz dele é irritante. Ele é completamente irritante, na verdade.
Ela reconhece todos os defeitos dele e sabe que ele é detestável.
Mas ela gosta dele.
Ela se afeiçoa por ele.
Ela se apega a ele.
Ela se diverte com ele.
Ela quer ficar perto dele.
E se esforça como louca, simplesmente porque quer fazê-lo rir.
Precisa vê-lo sorrindo porque sabe que ele é verdadeiro.
Enquanto existe tanta gente de mentira, tanta gente plástica, ele parece mais real.
Ele parece palpável - e como - e parece sincero em tudo o que diz.
Às vezes ele reserva um sorriso malicioso só pra ela.
Só ela vê e entende o que aquele sorriso representa. Ou pelo menos é isso que ela acha.
Ela gosta de fazê-lo rir. É só isso. Só isso.
Ela gosta de pensar nele às vezes, quando está distraída, pra lembrar-se do sorriso.
Lembrar-se do sorriso e lembrar que existe verdade na sua vida.
Mesmo que essa parte seja uma mentira.