terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Valentine.


“Olá, estranha.”

Sempre odiei a ideia de ter que conversar no dia seguinte. Não, eu não quero seu número de telefone, não quero seu e-mail, seu sobrenome para te achar no Facebook. Eu já tenho amigos suficientes, não preciso de mais um. Uma pessoa que passa as mãos pelo meu corpo e acaricia minha língua e meu ego por alguns minutos não é um candidato a amigo. Provavelmente o melhor jeito possível para não se tornar meu amigo é me beijando em uma noite; na manhã seguinte você não vai precisar nem lembrar o meu nome. Eu vou desaparecer atrás de uma viga e vou rezar pra que você faça o mesmo.

“Olá, estranha.”

Eu sempre deixei que eles me beijassem, para ser bem honesta. É um problema que eu vou ter que trabalhar um dia, possivelmente em terapia, com ajuda profissional. Eu não sou exatamente promíscua, mas não sei exatamente como dizer “não me beije mais” ou “não ponha a mão aí”. No final das contas, acabo me constrangendo comigo mesma para não gerar um constrangimento com quem-quer-que-seja. E no mais, eu me distraio. Eu não me importo o suficiente comigo pra parar os rapazes. Nunca morri por isso, e sempre me seguro a ideia de que, se necessário fosse, eu diria não na hora certa. Nunca precisei disso. Mas sentia tanta vergonha na manhã seguinte. A sensação sempre era como se eu tivesse me embebedado e feito algo errado. Antes tivesse. Antes tivesse.

“Olá, estranha.”

Eu nunca tive problema com solidão. Sempre vi todo mundo falando sobre almas gêmeas. Metades de frutas. Pés e sapatos. Eu estou bem, sério. Eu poderia ter alguém se quisesse, mas eu prefiro permanecer com meus padrões altos demais, critérios minuciosos demais, dealbreakers simples demais. Eu preferi continuar sendo antipática e séria com desconhecidos. Continuei sendo levemente estranha. Continuei tomando os socos e as mazelas mais fortes para poupar os outros, especialmente para me poupar de uma exposição ao ridículo. Eu estou bem. Eu não procuro por ninguém. Ninguém me procura. Eu estou bem.

“Olá, estranha.”

Foi uma surpresa, portanto, por esses e tantos outros motivos, tantas histórias que eu não tive tempo de contar, que eu me assustei acordando naquela cama que não era minha, com um travesseiro que não cheirava a mim. Minto. Não me assustei nem por um segundo com aquilo, e a falta de assombro foi o que me deixou mal. Eu estava sob uma roupa que não era minha, com um teto que eu não conhecia, a luz do sol vinha da direita e não diretamente da frente como na minha janela. Nenhum cheiro era meu. Havia um homem, um rapaz, talvez um garoto sentado ao lado dos meus joelhos.

“Olá, estranha.”

Parecia um bom rapaz. Lembrava-me dele. Eu estava distraída e isolada no meio dos meus amigos. Sozinha. Ele riu de algo que eu disse enquanto tentava ser a séria do grupo. Eu o encarei por bons minutos em silêncio. Ele disse que eu tinha olhos gigantes e pretos e que parecia uma fada. Eu não abri a boca. Ele me puxou pelos dedos e passou o resto da noite falando. Eu nunca o mandei calar a boca, o que teria feito sem nenhum pudor caso quisesse. Mas não quis. Não queria que ele parasse de falar, nunca mais. Jamais soltou meus dedos. Tinha um queixo proeminente e olhos azuis. Sob a luz vermelha forte do lugar, parecia mais baixo do que realmente era. Eu lembrava como não sorri para ele, não respondia nada substancial. Nada palpável. Eu o beijei, e não o contrário. Eu nunca havia sentido vontade real de beijar alguém. Eu nunca havia sido beijada por ninguém que me magoaria se não tivesse beijado. Eu nunca tinha beijado alguém com desejo. Ele comentou que era engraçado que eu usasse tanto preto e bebesse conhaque enquanto todos bebiam vodka, mas usava gloss com sabor doce nos lábios.

“Olá, estranha.”

“Você é um daqueles caras? Daqueles que esquecem nosso nome na manhã seguinte?”

“Você nunca me disse. Nada sobre você. Nem seu nome.”

“É tudo que eu sei, também.”

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Av elefanterna.

Esquisito como os locais da infância não são sagrados. E são bem menores do que eu pensava. Hoje por um infortúnio familiar eu estava acordada quando o sol apareceu e estava inquieta, com a garganta seca e o olhar meio úmido. Tive a infeliz ideia de sair pra caminhar e acabei sendo levada inconsciente até uma praça onde eu passei minha infância. Pra quê. Quando eu era pequena, eu achava que apenas pessoas de bem acordavam e saíam às ruas antes das oito da manhã. Achava digno, bonito. A rua sempre parece mais clarinha e limpa quando o sol nem esquentou o asfalto e as pedras ainda. O céu parece mais bonito, mesmo que esteja nublado e poluído, o que não era o caso hoje. Deitei aleatoriamente em um banco absolutamente desconfortável, cuja existência não faz sentido no meio daquela praça. Hoje eu fui levada a conclusão que eu posso ouvir o The Wall fora da ordem e ele ainda se encaixa perfeitamente quanto a musicalidade. As letras ficam confusas, but then again, elas não fazem exatamente sentido quando ouvidas na ordem escolhida pelo Roger, mas isso não tem nada a ver com essa anedota, se é que é uma anedota; é só pro efeito de curiosidade. Tentativa número nove de parar de gostar tanto de fazer o errado. Vai durar uns dois meses. Lá ao longe perto do pombal havia um mendigo fumando crack. Achei bonito. Não era como no noticiário, ele não se sacudia, não dizia nada, não gritava. Definitivamente fumava crack, mas fumava numa tranquilidade louca. Duvido que eu fosse encontrá-lo caso voltasse lá daqui a duas semanas. Mas o pior foi quando eu me sentei, finalmente, desconfortavelmente, e resolvi dar atenção àquele lugar que me acolheu tantas vezes na companhia dos meus avós fascistas. Uma visão triste. Suspirei mais do que respirei. O lugar é tão menor, tão mais baixo do que a minha lembrança. A gangorra tem lascas, os pneus que a acomodavam foram totalmente enterrados no solo. As correntes dos balanços estão gastas, enferrujadas, desalojadas dos elos. A areia parece muito mais suja, escura. Cheguei a me arrepiar e meus olhos ficaram ainda mais molhados. Tremi enquanto dava goles mal-calculados no café; o céu-da-boca está descamando até agora com as queimaduras. Eles disseram que há cafeína demais na minha corrente sanguínea e a falta de um tempero de verdade na minha vida. Eu retruquei que me deixassem em paz pois eu estou bem, apenas surpresa por ainda estar sozinha. Talvez nem tanto. Eu estou ocupada demais sendo existencialista aos poucos e arregalando meus olhos, erguendo as sobrancelhas e mordendo os dentes pra me preocupar com qualquer pessoa. Deitei de novo. Senti um vazio muito grande ao encarar o céu - o céu continuava igualzinho ao da minha infância, apesar de eu dar muito mais atenção para ele, ou Ele, hoje em dia - e perceber por fim que nenhum local é realmente sagrado. Nenhum refúgio está a salvo da ira dos homens, ou pior ainda, do tempo. Nenhuma escadaria vai durar enquanto pisarem nela. O local onde nós nos vimos pela primeira vez era uma cafeteria e agora é uma loja de roupas. Nós nos beijamos certa vez em uma mesa que não existe mais, foi substituída por um modelo mais moderno, mais futurista pra combinar com o resto da decoração do lugar. Uma vez eu deitei no seu peito e nem ele existe hoje, e eu ficaria muito mais confortável em saber que aquele lugar onde eu sofri e me deliciei tantas vezes virou pó. Mas não. Seu corpo não é sagrado. Seu corpo, meu refúgio, hoje se macula numa cova rasa, certamente invadido de larvas, de terra, só uma cavidade vazia onde antes ficava o coração que me amava tanto. E o pior de tudo é que o lugar mais sacro de todos é a minha mente, e esta também, sinto dizer, já foi arruinada há tanto tempo que mal consigo me lembrar como era antes de eu chegar.