sábado, 5 de julho de 2014

Den stadsträdgårdsmästare.

Há um momento em que todo mundo se torna um jovem pretensioso e com mania de grandeza e de profundidade, ou de superficialidade e atitude pessimista, derrotista. Eu optei pela primeira opção mas acabei caindo na segunda. Minha memória mais viva é a de me refugiar por dias deitada no chão, olhando pro teto, fumando escondida e espirrando colônia masculina de hora em hora pro alto, contra a luz do sol, observando e procurando significado e poesia freudiana na forma em que o borrifo se comportava até sumir por completo. Sem fome, sem sede, fotossintetizando como se em algum momento eu pudesse estalar e continuar a vida. Ninguém me procurou, ninguém se incomodou. Arranquei alguns tufos de cabelo, rasguei meu sexo com as unhas longas e irregulares; roí cada uma delas até sangrar, eventualmente. Mas é só uma das lembranças, talvez nem a mais viva. Talvez eu nem tenha feito isso de verdade, só sonhado. De qualquer forma, eventualmente eu saí do chão.

As outras lembranças foram de folhas bem verdes e os braços dela. Ela foi a espécie de troféu pro meu ego superficialista e blasé, a personificação de tudo aquilo que eu queria arrancar das páginas dos artigos prepotentes nos quais eu me enfiava e esfregar no meu peito nu até fazê-lo sangrar com a tinta; ela era a própria superficialidade. Magra, pálida, profunda, nunca corava, olhos semicerrados, drogas, roupas reles, ralas. A única cor que se via nela era das veias azuis e roxas por baixo da pele. Puta macilenta, parecia que podia quebrar a qualquer momento. Seu interesse em mim era o fato de eu ser mais vazia que ela. Eu não era a única, óbvio. Ela se intitulava como uma representação fiel da vadia intimista acobertada pela sociedade e gostava disso, e portanto ia ter com várias outras mulheres e alguns esporádicos homens. Eu honestamente não me importava, desde que eventualmente ela viesse até mim.

Aparecia nos horários mais inoportunos pra classe média, mas pelo menos ela conseguia, não me pergunte como, prover as próprias drogas, cigarros e álcool. Eu nunca a vi com amigos. Deitava-se em ângulos estranhos no colchão, fechava as cortinas irregularmente, não tragava nem dispensava as cinzas com a frequência que eu gostaria. Me irrita quem fuma sem um passo certo, ora tragando incessantemente, ora deixando o cigarro consumir-se sozinho. Eu observava à distância; havia uma aura de impenetrabilidade enquanto ela se calava e eu gostava de procurar poesia nela, apesar de que, verdade seja dita, ela era poesia pronta pura quando me chamava e se despia, ou me despia só pra olhar. Era eu quem trazia cor a ela. Eu nunca a via sorrindo. Eu trazia cor nas suas feições, cor nos corações de batom que eu fazia nas auréolas dos seus seios, cor no sangue que eu arrancava às mordiscadelas no lábio inferior dela, cor nas cicatrizes dos arranhões que eu fazia questão de marcar enquanto sentia os seus ossos do colo.

Um dia ela apareceu depois de duas semanas sem dar notícia com roxos no corpo inteiro e um corte fundo nos pulsos, às gargalhadas, mas eu só notei tarde demais: ela se jogou e me abraçou, lavando meu cabelo com sangue. Eu a ajudei a remendar-se a contragosto: era ciúme que me enchia de vê-la marcada com cores dadas por outra pessoa. Perguntei se foi outra mulher, ela disse que não. Homem, casado, pai de família. Menos pior. Um dia ela me perguntou, a pedante maldita, se eu a amava. Eu deixei bem claro que tudo que eu queria dela era a superficialidade que ela trazia. Ela me agarrou com os pulsos enfaixados e me beijou, e só aí eu notei que nunca tinha a beijado na boca. Disse que me amava pra que eu me sentisse culpada e desapareceu pra que eu achasse que ela havia se matado. Por mim. E não havia nada de especial a respeito dela.

4 comentários:

  1. esse texto tem uma agressividade certa, diferente de muitos textos doces que voce ja escreveu. e continua incrivel <3

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  2. Estou apaixonada pelo ritmo intenso e não acelerado do texto, sobretudo por ele ser curto. As personalidades das personagens foram muito bem expressas e também me apaixonei por elas. Esse final inesperado foi como um baque surdo pra mim. Estou feliz de ter lido isso e os outros textos... Tua escrita é fantástica.

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  3. Acho que esse é o teu texto que mais me encantou! Tua escrita é incrível, me prendeu nas personagens com pouquíssimo tempo e palavras. Lindo, lindo.

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