quarta-feira, 16 de janeiro de 2013
Av elefanterna.
Esquisito como os locais da infância não são sagrados. E são bem menores do que eu pensava. Hoje por um infortúnio familiar eu estava acordada quando o sol apareceu e estava inquieta, com a garganta seca e o olhar meio úmido. Tive a infeliz ideia de sair pra caminhar e acabei sendo levada inconsciente até uma praça onde eu passei minha infância. Pra quê. Quando eu era pequena, eu achava que apenas pessoas de bem acordavam e saíam às ruas antes das oito da manhã. Achava digno, bonito. A rua sempre parece mais clarinha e limpa quando o sol nem esquentou o asfalto e as pedras ainda. O céu parece mais bonito, mesmo que esteja nublado e poluído, o que não era o caso hoje. Deitei aleatoriamente em um banco absolutamente desconfortável, cuja existência não faz sentido no meio daquela praça. Hoje eu fui levada a conclusão que eu posso ouvir o The Wall fora da ordem e ele ainda se encaixa perfeitamente quanto a musicalidade. As letras ficam confusas, but then again, elas não fazem exatamente sentido quando ouvidas na ordem escolhida pelo Roger, mas isso não tem nada a ver com essa anedota, se é que é uma anedota; é só pro efeito de curiosidade. Tentativa número nove de parar de gostar tanto de fazer o errado. Vai durar uns dois meses. Lá ao longe perto do pombal havia um mendigo fumando crack. Achei bonito. Não era como no noticiário, ele não se sacudia, não dizia nada, não gritava. Definitivamente fumava crack, mas fumava numa tranquilidade louca. Duvido que eu fosse encontrá-lo caso voltasse lá daqui a duas semanas. Mas o pior foi quando eu me sentei, finalmente, desconfortavelmente, e resolvi dar atenção àquele lugar que me acolheu tantas vezes na companhia dos meus avós fascistas. Uma visão triste. Suspirei mais do que respirei. O lugar é tão menor, tão mais baixo do que a minha lembrança. A gangorra tem lascas, os pneus que a acomodavam foram totalmente enterrados no solo. As correntes dos balanços estão gastas, enferrujadas, desalojadas dos elos. A areia parece muito mais suja, escura. Cheguei a me arrepiar e meus olhos ficaram ainda mais molhados. Tremi enquanto dava goles mal-calculados no café; o céu-da-boca está descamando até agora com as queimaduras. Eles disseram que há cafeína demais na minha corrente sanguínea e a falta de um tempero de verdade na minha vida. Eu retruquei que me deixassem em paz pois eu estou bem, apenas surpresa por ainda estar sozinha. Talvez nem tanto. Eu estou ocupada demais sendo existencialista aos poucos e arregalando meus olhos, erguendo as sobrancelhas e mordendo os dentes pra me preocupar com qualquer pessoa. Deitei de novo. Senti um vazio muito grande ao encarar o céu - o céu continuava igualzinho ao da minha infância, apesar de eu dar muito mais atenção para ele, ou Ele, hoje em dia - e perceber por fim que nenhum local é realmente sagrado. Nenhum refúgio está a salvo da ira dos homens, ou pior ainda, do tempo. Nenhuma escadaria vai durar enquanto pisarem nela. O local onde nós nos vimos pela primeira vez era uma cafeteria e agora é uma loja de roupas. Nós nos beijamos certa vez em uma mesa que não existe mais, foi substituída por um modelo mais moderno, mais futurista pra combinar com o resto da decoração do lugar. Uma vez eu deitei no seu peito e nem ele existe hoje, e eu ficaria muito mais confortável em saber que aquele lugar onde eu sofri e me deliciei tantas vezes virou pó. Mas não. Seu corpo não é sagrado. Seu corpo, meu refúgio, hoje se macula numa cova rasa, certamente invadido de larvas, de terra, só uma cavidade vazia onde antes ficava o coração que me amava tanto. E o pior de tudo é que o lugar mais sacro de todos é a minha mente, e esta também, sinto dizer, já foi arruinada há tanto tempo que mal consigo me lembrar como era antes de eu chegar.
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Gosto do jeito que tu escreve, Audy. Parece que estou lendo algo direto da tua cabeça, sabe, sem edições ou enfeites. E isso que deixou esse texto tão natural. É praticamente uma honra poder estar lendo algo assim.
ResponderExcluirQue texto maravilhoso, Audy... Vim ler despretensiosamente e na primeira linha já fui sugado. Triste, mas sincero, acho isso importante. E fica mais triste ainda no final. Na lembrança as coisas sempre parecem mais traiçoeiramente bonitas mesmo, a realidade é um choque...
ResponderExcluir"O lugar é tão menor, tão mais baixo do que a minha lembrança. A gangorra tem lascas, os pneus que a acomodavam foram totalmente enterrados no solo. As correntes dos balanços estão gastas, enferrujadas, desalojadas dos elos. A areia parece muito mais suja, escura. Cheguei a me arrepiar e meus olhos ficaram ainda mais molhados." Gostei muito desse trecho :)
que lindo, eu fiquei maravilhada pq depois que terminei de ler o texto, entendi o pq do titulo haha e caramba sensacional, mexeu comigo sim.
ResponderExcluirTeu texto deixou um calorzinho dentro do meu peito. Parabéns, Audy, tua escrita é maravilhosa.
ResponderExcluirEsse texto está maravilhoso. Sério. Poxa, você é um gênio.
ResponderExcluirPUTA QUE PARIU QUE TEXTO MARAVILHOUSO
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