quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
Recitativ.
"The beginning simple, almost comic."
Eu nos imagino. Constantemente. Eu imagino nós dois sentados juntos em um caixote. Sabe aqueles caixotes que sua irmã deixa na parte de trás do bar pra ter onde sentar quando precisa dar uma respirada mais funda? Nos imagino lá. Sentados os dois naquele caixote maior, com alguma palavra importada escrita em preto na madeira já meio podre, meio capenga. Mas nos sentamos sem medo. Tu bebes. Eu observo. Tu te recusas a reconhecer meus olhos e eu me recuso a tirá-los de ti. Tu te constranges; eu não. Eu me divirto no teu constrangimento, eu acho graça na tua graça sem graciosidade alguma. Eu penso em várias coisas, como sempre, eu tenho muito em mente, eu tenho muito o que pensar e muito o que decidir, mas no fundo eu sei que é tudo besteira e que eu só estou pensando em ti. Calculando teu pomo-de-Adão. Analisando a gaze presa à tua testa com esparadrapo e aliviada eu suspiro, quase sorrio, pois finalmente ela não está vermelha. Tu finalmente me olhas, fingindo malemal uma indiferença, desapercebição, e sem dizer nada, tu me abres uma garrafa também. Me entrega de má vontade, quase, e volta a olhar pro outro lado da rua. A janela do apartamento da tua irmã está fechada e por entre as frestas do batente da janela tu consegues ver luz. Sabes que ela está com meu melhor amigo lá. Te irrita. Resmunga, resmunga, resmunga. Não me olha. Eu gosto do jeito que teus dedos ficam brancos quando tu seguras a garrafa gelada com força. Eu amo.
"Just a pulse. Bassoons, basset horns, like a rusty squeezebox."
Tu finalmente te viras pra mim, como se não me conhecesse e quisesse puxar papo. Eu prendo um sorriso, eu mantenho a boca ocupada no gargalo para não parecer boba demais, mas presto atenção em cada palavra. E tu falas. Falas resmugando, entrecortado, baixo, animalesco. Em dois minutos tu já falaste mais comigo do que falou em uma vida inteira com a tua irmã, ela diria. Ela diria: "Pombinha". Eu diria: "Rouxinol" e ela quase choraria de saudade e nostalgia. Acho que tu és um Menuetto. Ela é um Allegro ma non troppo. Eu sou um Adagio. E juntos somos uma Gavotte. Perdi o raciocínio do que tu estavas dizendo pois acho tua boca tão linda quando se move mas é tão fútil só te ver por fora enquanto tu te expões pra mim, então eu presto. Tu estás reclamando das mesmas coisas que reclama sempre. Da irmã, do amigo, do clube, da cerveja, do machucado, dos alemães. Nunca te vi reclamar de nada além disso. Ah, minto. Reclamas de mim com frequência, mas não é a mesma coisa. De mim tua reclamação é só sobre amor. Queres que eu te ame menos. De todo, não é ruim. Mas pedes que eu te ame menos e por menos tempo. Todo o tempo. Mas eu não tenho culpa. Sabes que eu tenho a língua afiada e molhada; as palavras simplesmente escorregam dela. Eu não posso controlar. Sinto tanta necessidade de te apertar os ombros. Puxar tua pele das costas da mão até onde vai. Morder toda a linha do teu maxilar até chegar no teu sorriso. Não sentes falta, eu te pergunto, não sentes falta da semana em que nós acordamos juntos? Não, não pergunto. Minto. Nunca acordamos juntos. Eu estou confundindo lembranças e sonhos de novo. Deixa pra lá.
"Then suddenly, high above it, an oboe. A single note hanging there, unwavering."
A cerveja acaba. A garrafa já está quente. Eu ainda te amo e se todo mundo ficar bem quietinho, os gemidos da irmã e do melhor amigo são audíveis. Ele se ofende contigo, sabe? Sente ciúmes. Ciúmes porque passou a vida comigo e te trouxe até mim e tu és meu dono agora. Não nesses termos, talvez. Não és possessivo nem nada, muito menos me queres. Mas ele sabe que eu o deixaria por ti. Ele é meu melhor amigo, teu melhor amigo, mas eu sou uma idiota. Tu também. Ele também. Ele largaria tudo pela tua irmã. Mas estou divagando, qual era mesmo o assunto? Ah, sim. Tua boca. Teu maxilar. Teus ombros e braços que eu conheço tão bem e estudei tanto por baixo do couro nomeado. Jogas a garrafa num canto. Agora tu fumas; eu observo. Tuas maçãs do rosto, teu nariz, a fumaça, como tu franzes o cenho e olhas pra janela com indignação. Bufas. Resmungas. De súbito é que eu noto que tu estás sentado mais perto agora.
"Until a clarinet took it over and sweetened it into a phrase of such delight!"
Pões o cigarro na frente da minha boca. Quase convidativo. Eu trago, tu observas. E aí tu sorris. Não muito, não articuladamente. Só com os cantos, os olhos. E não tardas a encostar o braço no meu e praticamente implorar pra que eu deite a cabeça na volta do teu pescoço. E aí eu não digo nada. Tu não dizes nada. Ninguém na rua diz nada. São quatro da manhã: quem tem algo a dizer às quatro da manhã que não possa esperar pelo nascer do sol? Eu estremeço, me beija, por favor, junto as mãos em prece entre os joelhos, por favor, e num movimento tu expulsas minha cabeça delicadamente apenas pra tirar o couro rude, e jogas a jaqueta pro lado, e eu posso deitar de novo e sentir a pele, o cheiro, o quente, e posso segurar tua mão, Cristo, tu permites que eu segure tua mão e conte as linhas da palma e memorize as nuances das cores das veias por baixo da tua pele ridícula. E eu não digo nada, mas passo o dedo pelas tuas veias com tanta delicadeza! E tu sentes na nuca o quanto eu te amo. E não podes ignorar isso. Não me beijas. Mas não me ignoras. E eu bem sei que isso é a maior declaração de amor possível a ti.
"It seemed to me that I was hearing a voice of God."
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QUE COISA MARAVILHOSA, AUDY
ResponderExcluirLindíssimo, Audy, me apaixonei.
ResponderExcluirHYASKIAUDGKUASDAU POR FAVOR
ResponderExcluirmuito bom, lindo mesmo.
lindooo
ResponderExcluirOlha, parabéns, achei "Recitativo" extremamente lindo!
ResponderExcluirÀs vezes divagas durante o texto e eu simplesmente AMO isso, sinto-me super confortável lendo o tipo de texto que escreves, e consigo até captar determinadas emoções. Dependendo, imagino os atores, cenários, enfim, amei.
Tu escreves muito bem!
Tua escrita é uma das mais hipnotizantes que já vi. Reconforta.
ResponderExcluirSeu melhor texto. Que coisa maravilhosa.
ResponderExcluirMeu texto favorito de todos os tempos! ♡
ResponderExcluirPode parecer bobo, mas chorei lendo isso.
ResponderExcluirobrigada por esse texto, ana.
ResponderExcluirEsse texto me afaga o coração de uma maneira que eu realmente não sei descrever.
ResponderExcluirMuito, muito, muito bom. :)
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