Eu estava tentando me
lembrar ontem de como foi que eu tinha inventado essa história. Ou pelo menos
como eu comecei a inventá-la, já que nós perdemos contato antes de eu poder
concluir o clímax da coisa toda. E me lembrei, eventualmente, que tudo começou
naquele dia em que nós dois nos encontramos no beco, você com a cara toda
manchada de porrada e eu ajoelhada por cima de um corpo presumidamente em
putrefação, mas Deus, como era lindo. Russos. Russos? Passei a mão pelas
tatuagens do braço e o morto se ergueu do chão, a jaqueta surradaça de couro
pingando impermeável de sangue, e você me olhou meio de esguelha como quem
pergunta “tá olhando o quê?” e saiu andando. Bem merecia que eu mandasse se
foder, ajoelhada só de saia naquela poça de sangue e lama e provavelmente porra,
afinal era um beco ao lado de uma boate, mas resolvi continuar a história.
Acabei trazendo o melhor amigo, a irmã e um novo protagonista, o grilo falante.
Uma vez ele me disse que eu seria perfeita se só abrisse a boca pra falar de
economia ou pra chupar pau. Achei poético, mas meio pesado pra ocasião. Era o
jantar de aniversário de casamento dos meus avós. Pegar o microfone foi um
pouco exagerado. Mas pra você a história só começou muito tempo depois, depois
do beco, depois da festa, depois da sua irmã, depois de mim. Só começou mesmo
no dia da lanchonete, quando você não me reconheceu e me enforcou por quarenta
e seis segundos no banheiro. Primeiro, as regras. A primeira regra era que eu
jamais poderia acordar depois dele. Coloca um despertador, não sei, se vira.
Não sei porque eu achei que aquilo tudo era muito glamouroso, mas acordava de
bom grado, roubava uma camisa e descia pro segundo andar seminua, tilitando de
frio, batendo o queixo, carregando os sapatos nas mãos, e achando tudo muito
engraçado. Uma vez eu coloquei cocaína no iogurte, não sei se você se lembra, e
passei a noite inteira tagarelando sobre o Jon Snow. Não esse Jon Snow. Em algum momento você deu uma risada, rolou pro meu
lado e dormiu. Eu fui embora, pra casa dele, e fiquei por lá. Ele me deu um
tapa e eu achei tudo muito engraçado. Ninguém nunca pensou duas vezes antes de
me dar um tapa na cara, o que é trágico quando eu paro pra pensar; but then
again, eu nunca paro e nunca penso. Eu me sinto extremamente lisonjeada em
estar aqui hoje, deitada no chão do palco da boate, sentindo o sangue enchendo os
meus pulmões. Você está bem longe, onde não pode me ouvir sufocando, mas eu
consigo ouvir seus urros e o barulho de osso quebrando enquanto você espanca o
terceiro homem com um pé-de-cabra. Pé-de-cabra, tão clichê. Eu dou graças por
estar bêbada, então viro pro lado e vomito, dando risada, cuspindo sangue, e
lembrando por que eu comecei a tentar lembrar como tudo começou. O importante
agora não é o começo, e nem o óbvio fim que me espera, e sim o meio, os tempos
no colchão. O dia que eu não consegui levantar da cama porque você tava me
abraçando tão forte, tão suado, tão amedrontado e gelado. A noite que eu passei
no apartamento da sua irmã, chorando trincada, rímel escorrendo pelo meu
pescoço e secando nos meus ossos da clavícula, olhando pra cima como quem ora
em desespero, a cabeça dela entre as minhas pernas. A noite em que eu não
consegui soltar minhas mãos de ti de tão fundo que eu enterrei minhas unhas nas
suas costas e você mal sentiu. A maioria foram noites. A noite em que nós
dividimos aquela cerveja no terreno ao lado do bar da sua irmã, na frente do
prédio dela, ouvindo ela transar com meu melhor amigo. A noite em que eu tomei
um tiro e você saiu correndo pra me vingar, ao invés de notar que eu ainda
piscava. Pra ser honesta, eu estou indignada, mas só vou notar no hospital.
Alguém vai aparecer. Eu sou muito branca pra morrer assim. Pensamentos felizes,
pensamentos felizes. O dia no castelo, no casamento. O dia na fonte, eu montada
em você tentando empurrar seu corpo monstruoso pra dentro d’água, o casal
inglês aos berros achando que nós estávamos transando ali na frente de todo
mundo em plena luz do dia. A noite na fonte, quando nós transamos, na verdade,
ali mesmo, na frente dos intercambistas. A madrugada em que você tirou a camisa
pela primeira vez na minha frente e eu vi que você falou sério sobre ter um
corpo de Frankenstein – e se irritou quando eu corrigi esse erro muito comum.
Você tem um buraco na costela que eu comparei a Jesus e você chorou pela
segunda vez. É muito difícil, eu descobri agora, chorar com sangue no canal
respiratório. Ouvi gritos da sua irmã. Ela chegou e me viu, eu acho. Fecho os
olhos. Ela grita por você e eu ouço os gritos do terceiro homem cessarem com um
último golpe forte de ferro contra osso. Quanto barulho de osso estilhaçando
pra um dia só. Eu ouso abrir os olhos e tem sangue escorrendo por entre as
frestas do telhado. Sua irmã é um polvo, eu não sangro mais. A única coisa que
a química não atingiu foi você, que permanece intacto ao meu lado, ainda você,
ainda humano e real. Sua irmã me beija na boca, eu respondo de olhos abertos.
Você me olha, tira a camisa e aperta o buraco na costela. Eu fecho os olhos,
puxo ela pra mais perto e brinco com os dedos dela.
eu queria poder respirar esse texto
ResponderExcluira maneira como você escreve é uma coisa maravilhosa
ResponderExcluirme recuso a acreditar que esse texto não tem pelo menos uns quinhentos comentários o adorando
ExcluirLinda!
ResponderExcluirAI MEU DEUSSSSSS AUDY FINALMENTE ACHO QUE VOU CONSEGUIR COMENNNNNNTARRR (vou só repetir o que eu já tinha te mandado no Ask, né): tua escrita é compatível com a da Helene Hegemann de um jeito tão bonito que dá até orgulho. (nossa sra agora vou comentar em todos os teus textos haha)
ResponderExcluireu não tenho muito amor por quando a abordagem coloca conflitos intensos demais,mas tu ganhou meu coração, outra vez.
ResponderExcluirnão consigo não me sentir atormentada com tanta imaginação que borbulha em detalhes tão inteiros, como a tua. obviamente, sou muito tua fan.
Acho que esse texto tem a ver com o Recitativ!
ResponderExcluirEu não consigo explicar porque eu sou tão apaixonada por esse texto. Volta e meia eu venho aqui, só ler de novo e de novo. Em silêncio e em voz alta, e cada uma dessas vezes parece que ele fica mais bonito - e mais triste também. Nem sei se eu entendi direito, só gosto de imaginar as cenas, os personagens, de ver essas frases tão bonitas dançando na minha cabeça.
ResponderExcluirque comentário bonito
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